Siddhis são superpoderes?
Segundo é narrado em textos clássicos, como resultado das primeiras formas do samādhi, o praticante adquire algumas habilidades, chamadas siddhis ou “perfeições”.
Ao exercer saṁyama sobre uma determinada manifestação da natureza, por exemplo, o yogi assimila o siddhi, o poder inerente a ela.
Esses poderes são formas diferentes de relacionar-se com as leis naturais, que visam a estimular o sādhaka, desenvolvendo confiança para assim permanecer motivado para a liberação, mokṣa.
Eles fazem parte da cultura do Yoga e do Tantra, e são mencionados em obras como o Yogasūtra ou o Śivasūtra.
Levitação no século XXI?
No entanto, e por fascinante que o temados siddhis seja para alguns praticantes de Yoga ocidentais, ele é igualmente assaz elusivo: não há nenhum mestre conhecido nas últimas décadas capaz de demonstrar, e muito menos ensinar, de que maneira funcionam ou podem ser aplicados os siddhis.
O Maharishi Mahesh Yogi, falecido guru dos Beatles, alegava ter domínio sobre os siddhis da levitação, e supostamente ensinava essas técnicas aos seus discípulos, usando o sūtra III:43 como “fórmula mágica”.
No entanto, o caro procedimento (4500 dólares) não é levitação propriamente dita, mas um treino para saltar sobre um colchão na postura do lótus.
Os discípulos do Maharishi chamam aquilo de yogic flying, e promovem competições par ver quem “voa” mais longe, como pode ser verificado aqui.

Este grupo acredita que se houver um número suficiente de pessoas pulando em padmāsana, a paz irá finalmente reinar no mundo.
Como efeitos colaterais desejáveis dessa “levitação” grupal, sempre segundo os discípulos do Maharishi, a economia mundial também melhora, a pobreza diminui e o terrorismo global é reduzido.
Tudo isso é “cientificamente demonstrado”, com gráficos e pormenores, no vídeo acima.
Além disso, aquele que “levita” mais alto ganha ovações do respeitável público e ainda ganha uma medalha por ajudar a salvar o mundo.
O amigo leitor pode questionar legitimamente qual é a relação causal entre pular feito uma rã com as pernas cruzadas e conseguir a paz mundial e a prosperidade global, mas essa é outra história.
As limitações dos siddhis
Por bem-intencionado e folclórico que o caso acima narrado pareça, nada tem a ver com o siddhi da levitação conforme é explanado na tradição do Yoga.
O próprio Patañjali Mahāṛṣi adverte o leitor no terceiro capítulo (III:38) do Yogasūtra que, “Embora estas sejam perfeições no mundo [dual],
constituem um obstáculo para o samādhi” (te samādhāvupasargā vyutthāne siddhayaḥ).
No sūtra 51, ele ainda afirma tadvairāgyādapi doṣabījakṣaye kaivalyam: “Pela destruição da semente dos condicionamentos e o desapego a esses [siddhis], alcança-se a libertação, kaivalya“.
Portanto, fica claro pela própria recomendação do sábio, que os siddis devem ser deixados de lado.
A descrição dos siddhis
Patañjali dedica uma boa parte do capítulo III dos Sūtras à enumeração e descrição dos diferentes suportes sobre os quais é possível fazer saṁyama, e as qualidades derivadas dessas contemplações. Apresentamos aqui uma lista parcial desses poderes.
परिणामत्रयसंयमाद् अतीतानागतज्ञानम् ॥ १६ ॥
pariṇāmatrayasaṁyamād atītānāgatajñānam ॥ 16 ॥
Fazendo saṁyama sobre as três transformações
surge o conhecimento do passado e do futuro.
pariṇāma = evolução, transformação
traya = tríplice
saṁyama = meditação
atīta = passado
anāgata = futuro
jñānam = conhecimento
O yogi, vivendo conscientemente, já não se distrai nem surpreende com nada pois, conhecendo a natureza da mente, e havendo compreendido no passado como ela funciona, consegue antecipar o futuro. As “três transformações” que o presente sūtra menciona são as três fases do pariṇāma listadas no 13.
शब्दार्थप्रत्ययानामितरेतराध्यासात्
सङ्करस्तत्प्रविभागसंयमात्सर्वभूतरुतज्ञानम् ॥ १७ ॥
śabdārthapratyayānāmitaretarādhyāsāt
saṅkarastatpravibhāgasaṁyamātsarvabhūtarutajñānam ॥ 17 ॥
Palavra, objeto e ideia confundem-se devido à superimposição.
Praticando saṁyama [sobre a diferença entre eles, surge]
o conhecimento da linguagem de todos os seres.
śabda = som, palavra
artha = objeto
pratyaya = ideia, conceito
itara-itara = um no outro
adhyāsāt = superimposição
saṅkara = confusão
tat = estes
pravibhāga = distinções, diferenciações
saṁyama = meditação
sarvabhūta = todos os seres
ruta = linguagem, idioma, fala
jñānam = conhecimento
संस्कारसाक्षात्करणात्पूर्वजातिज्ञानम् ॥ १८ ॥
saṁskārasākṣātkaraṇātpūrvajātijñānam ॥ 18 ॥
Pela percepção direta do saṁskāra, [surge]
o conhecimento dos nascimentos prévios.
saṁskāra = impressões subconscientes
sākṣāt = direto, imediato
karaṇa = percepção, experiência
pūrva = passado
jāti = nascimentos
jñānam = conhecimento
प्रत्ययस्य परचित्तज्ञानम् ॥ १९ ॥
pratyayasya paracittajñānam ॥ 19 ॥
[Contemplando] os conteúdos mentais
surge a compreensão das mentes dos demais.
pratyayasya = das ideias, noções, conceitos
para = outrem
citta = psiquê
jñānam = conhecimento
न च तत्सालम्बनं तस्याविषयीभूतत्वात् ॥ २० ॥
na ca tatsālambanaṁ tasyāviṣayībhūtatvāt ॥ 20 ॥
Porém, a base subjazente [i.e., o saṁskāra] a essa
compreensão fica fora do alcance da observação.
na = não
ca = porém
tat = esse, aquele
sālambanaṁ = com apoio
tasya = seu
aviṣayīn = fora do alcance
bhūtatvāt = ser, estar
कायरूपसंयमात्तद्ग्राह्यशक्तिस्तम्भे
चक्षुःप्रकाशासम्प्रयोगेऽन्तर्धानम् ॥ २१ ॥
kāyarūpasaṁyamāttadgrāhyaśaktistambhe
cakṣuḥprakāśāsamprayoge’ntardhānam ॥ 21 ॥
Pelo saṁyama sobre a forma do corpo, [o yogi] pode suspender
a percepção da sua luz, permanecendo invisível aos olhos de outrem.
kāya = corpo
rūpa = forma
saṁyama = meditação
tat = esse
grāhya = que pode ser percebido
śakti = poder
stambhe = suspenso, interrompido
cakṣuḥ = olho, olhar
prakāśa = luz, iluminação, características perceptíveis
asamprayogaḥ = desconectado, interrompido, suspenso
antardhānam = invisibilidade, desaparecimento
एतेन शब्दाद्यन्तर्धानमुक्तम् ॥ २२ ॥
etena śabdādyantardhānamuktam ॥ 22 ॥
Pelo mesmo processo é explicada a suspensão dos sons e demais
[capacidades do corpo de ser percebido: cheiro, tato e paladar].
etena = por este
śabdādi = som e outros
antardhānam = suspensão, parada
uktam = é explicado
सोपक्रमं निरुपक्रमं च कर्म तत्संयमादपरान्तज्ञानमरिष्टेभ्यो वा ॥ २३ ॥
sopakramaṁ nirupakramaṁ ca karma
tatsaṁyamādaparāntajñānamariṣṭebhyo vā ॥ 23 ॥
As ações produzem frutos imediatos ou futuros.
[Meditando sobre] elas, o yogi antecipa seus resultados.
Assim, conhece o momento da sua morte e seus sinais.
sopakramaṁ = imediato, ativo, de rápida frutificação
nirupakramaṁ = dormente, inativo, de frutificação lenta
ca = e
karma = ação
tat = essas
saṁyama = meditação
adaparānta = morte
jñāna = conhecimento
ariṣṭebhyaḥ = através de sinais, presságios
vā = ou
मैत्र्यादिषु बलानि ॥ २४ ॥
maitryādiṣu balāni ॥ 24 ॥
[Meditando sobre] a amizade e outras [virtudes, o yogi] se fortalece.
maitri = amizade
ādiṣu = e outras, demais, etcetera
balāni = força
बलेषु हस्तिबलादीनि ॥ २५ ॥
baleṣu hastibalādīni ॥ 25 ॥
[Ao fazer saṁyama] nas forças
[surge] a força do elefante.
baleṣu = sobre as forças
hastibalādīni = a força do elefante
प्रवृत्त्यालोकन्यासात्सूक्ष्मव्यवहितविप्रकृष्टज्ञानम् ॥ २६ ॥
pravṛttyālokanyāsātsūkṣmavyavahitaviprakṛṣṭajñānam ॥ 26 ॥
Dirigindo o foco da luz interior surge o conhecimento
de objetos sutis, ocultos ou distantes.
pravṛtti = atividade sutil, luz da percepção
aloka = luz, iluminar, tornar visível
nyāsāt = direcionar, focar, concentrar
sūkṣma = sutil
vyavahita = escondido, oculto
viprakṛṣṭa = distante, remoto
jñānam = conhecimento
भुवनज्ञानं सूर्ये संयमात् ॥ २७ ॥
bhuvanajñānaṁ sūrye saṁyamāt ॥ 27 ॥
Pelo saṁyama sobre o Sol, conhece-se o Cosmos.
bhuvana = universo, cosmos
jñānaṁ = conhecimento
sūrya = sol
saṁyamāt = prática de saṁyama: concentração, meditação e samādhi
चन्द्रे ताराव्यूहज्ञानम् ॥ २८ ॥
candre tārāvyūhajñānam ॥ 28 ॥
[Através do saṁyama sobre] a Lua adquire-se
o conhecimento da posição das estrelas.
candra = lua
tāre = das estrelas
vyūha = sistema, arranjo ou posição
jñānam = conhecimento
ध्रुवे तद्गतिज्ञानम् ॥ २९ ॥
dhruve tadgatijñānam ॥ 29 ॥
[Aplicando saṁyama sobre] a estrela polar, conhecimento
sobre o movimento dos corpos celestes pode ser obtido.
dhruve = a estrela polar
tadgati = seus movimentos
jñānam = conhecimento
नाभिचक्रे कायव्यूहज्ञानम् ॥ ३० ॥
nābhicakre kāyavyūhajñānam ॥ 30 ॥
[Meditando] sobre o cakra do umbigo [manipura,
ganha-se] conhecimento dos sistemas do corpo.
nābhicakre = sobre o centro energético da região do umbigo
kāyavyūha = dos sistemas do corpo físico
jñānam = conhecimento
कण्ठकूपे क्षुत्पिपासानिवृत्तिः ॥ ३१ ॥
kaṇṭhakūpe kṣutpipāsānivṛttiḥ ॥ 31 ॥
[Exercendo saṁyama] no poço (centro) da
garganta, cessam a fome e a sede.
kaṇṭha = garganta
kūpe = no poço
kṣut = fome
pipāsā = sede
nivṛttiḥ = cessar, retrair
कूर्मनाड्यां स्थैर्यम् ॥ ३२ ॥
kūrmanāḍyāṁ sthairyam ॥ 32 ॥
[Pelo saṁyama sobre] kūrmanāḍī [meridiano
da traquéia, surge] a estabilidade [emocional].
kūrmanāḍyāṁ = sobre kūrmanāḍī, o “meridiano da tartaruga”, na região da garganta
sthairyam = estabilidade, firmeza
मूर्धज्योतिषि सिद्धदर्शनम् ॥ ३३ ॥
mūrdhajyotiṣi siddhadarśanam ॥ 33 ॥
[Meditando na] luz do alto da cabeça [sahāsrara]
obtém-se a visão dos seres perfeitos.
mūrdha = parte mais alta da cabeça
jyotiṣi = luz
siddha = seres perfeitos, mestres
darśanam = visão
प्रातिभाद्वा सर्वम् ॥ ३४ ॥
prātibhādvā sarvam ॥ 34 ॥
Ou [o conhecimento de] todas as coisas surge da intuição.
prātibhā = insight, luz da intuição, iluminação
vā = ou
sarvam = tudo
हृदये चित्तसंवित् ॥ ३५ ॥
hṛdaye cittasaṁvit ॥ 35 ॥
[Pelo saṁyama] sobre o coração,
[obtém-se] conhecimento total de psiquê.
hṛdaye = coração
citta = psiquê
saṁvit = conhecimento completo, total
सत्त्वपुरुषयोरत्यन्तासंकीर्णयोः प्रत्ययाविशेषो भोगः
परार्थत्वात्स्वार्थसंयमात्पुरुषज्ञानम् ॥ ३६ ॥
sattvapuruṣayoratyantāsaṁkīrṇayoḥ pratyayāviśeṣo bhogaḥ
parārthatvātsvārthasaṁyamātpuruṣajñānam ॥ 36 ॥
Sattva [a psiquê purificada] e Puruṣa são absolutamente diferentes.
Apesar [disso], a base das experiências é comum a ambos.
Pelo saṁyama sobre si mesmo, devido à busca mais elevada,
[revela-se] o conhecimento da Consciência.
sattva = pureza mental e emocional, harmonia
puruṣa = Ātma, Ser, Consciência
yoḥ = entre
atyanta = completamente, de maneira total
asaṁkīrṇayoḥ = apesar da diferença
pratyayaḥ = com uma base comum
aviśeṣaḥ = não diferente
bhogaḥ = experiência, desfrute
parārthatvāt = devido à busca mais elevada
svārtha = pelo seu próprio
saṁyamāt = devido à meditação, por causa do saṁyama
puruṣa = Ātma, Ser, Consciência
jñānam = conhecimento
॥ हरिः ॐ ॥
+ sobre o
Yogasūtra aqui
॥ हरिः ॐ ॥
Recomendamos esta leitura de John Zubrzycki para quem quiser compreender o vínculo entre a espiritualidade e a mágica na Índia: Empire of Enchantment.
A imagem que ilustra este artigo foi extraída da capa desse livro.
॥ हरिः ॐ ॥
Pedro nasceu no Uruguai, 56 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
Biografia completa | Artigos
Sou totalmente leiga neste assunto,mas consegui captar coisas bem interessantes neste seu artigo ,parabéns !
Muito bom, Pedro. Muito obrigado pelos esclarecimentos… Fiz o curso de Siddhis da MT, e esse conteúdo que você apresenta aqui agregou conhecimento para mim! Saudações amigo!
Post inútil não ajudou em nada
Harih Om
“Praticando Samyama sobre o agora, alcança-se a descomplicada liberação”
Om)))
muito bom,principalmente os ultimos três parágrafos!