विरामप्रत्ययाभ्यासपूर्वः संस्कारशेषोऽन्यः ॥ १८ ॥
virāmapratyayābhyāsapūrvaḥ
saṁskāraśeṣo’nyaḥ ॥ 18 ॥
A latência remanescente com a supressão dos conteúdos
da psiquê é o outro [samādhi, chamado asaṁprājñāta].
[Ele] é precedido pela prática da supressão dos conteúdos
[da psiquê] e possui o saṁskāra apenas como resíduo. || 18 ||
virāma = cessação, parada, interrupção, descontinuidade, supressão
pratyayaḥ = causa, princípio cognitivo, conteúdo de citta, cognição, certeza, convicção
abhyāsa = aplicação, repetição, prática
pūrvaḥ = precedido por, tendo como pré-requisito
saṁskāraśeṣaḥ = que tem o saṁskāra somente como resíduo
anyaḥ = o outro
Asamprājñāta, o samādhi sem conteúdos
Podem ser feitas duas perguntas em relação ao asamprājñāta samādhi, samādhi sem conteúdos:
1) como se obtém?
2) qual é a sua natureza?
A primeira questão é respondida pelo início do sūtra: virāmapratyayābhyāsapūrvaḥ, esse samādhi especial “é precedido pela prática da supressão [da identificação com os] conteúdos [da psiquê]”.
Isto pode ser compreendido de duas maneiras: por um lado, podemos interpretar virāmapratyaya como a descontinuidade total dos conteúdos de citta.
Por outro lado, podemos considerar que esse virāmapratyaya, em verdade, não é necessariamente deixar de pensar, mas deixar de identificar-se com os processos do pensar.
Noutras palavras, que o asamprājñāta samādhi não seja a cessação ontológica dos vṛttis mas o desprendimento total em relação ao conhecimento dos objetos que o conhecedor observa.
A segunda questão, sobre a natureza do samādhi, fica clara quando olhamos para o termo composto saṁskāraśeṣaḥ.
Essa palavra composta aponta, nesse contexto, para o fato de que, nesta prática, os saṁskāras, as impressões latentes do subconsciente, permanecem apenas em suas formas residuais (śeṣaḥ).
Noutras palavras, elas não ficam mais ativas e perdem, assim, a capacidade de gerar novos conteúdos durante a prática de meditação.
Quando o saṁskāra perde esse poder sobre a psiquê, advém então essa cessação da identificação com os conteúdos de citta.
Fica claro assim que a prática desse samādhi, portanto, promove e completa o antaḥkarāṇaśuddhi, a purificação do psiquismo, essencial para completar o processo da libertação, kaivalya.
Navegando o sūtra 18
Não é difícil equivocar-se ao tentar definir este samādhi. Asamprājñāta é a absorção meditativa final, que segue após o vitarkā, o vicāra, o ānanda e asmitā samādhis, que Patañjali mencionou no sūtra 17.
Ele surge quando desaparece a identificação com o vṛtti ‘eu sou’ (asmitā), quarto e último estágio do samprājñāta samādhi que estudamos no sūtra anterior.
Vyāsa, o comentarista do Yogasūtra, nos esclarece ainda mais:
“Quando todas [as identificações com] os processos e conteúdos da consciência já foram superadas, e somente os saṁskāras permanecem em forma residual, essa cessação é chamada asamprājñāta, samādhi além da reflexão.
“O meio para se obter este samādhi é o desapego mais elevado. A prática com objetos de apoio [para a contemplação] não é eficiente para alcançar este grau de samādhi”.
Quando até mesmo a desidentificação com os vṛttis sáttvicos dos quais trata o sūtra anterior é alcançada e o praticante desenvolve desapego em relação a esses conteúdos, ele alcança o asamprājñāta samādhi.
Recapitulando, esses vṛttis sáttvicos são: clareza de autoanálise, clareza de discernimento, reflexão sobre a plenitude e percepção da diferença entre o ego e o Ser.
Ao surgir esse estado, os saṁskāras não frutificam nem formam novos vṛttis, mas permanecem apenas em estado latente, como “sementes queimadas”, para usar a expressão de Vyāsa.
O que é o saṁskāra?
Para compreendermos o presente sūtra precisaremos, primeiramente, definir a palavra saṁskāra, que aparece aqui, por primeira vez nesta obra.
A palavra saṁskāra é traduzida como ‘ritual’, mas quer dizer também embelezamento, purificação, sacralização, cerimônia purificatória.
Deriva da raíz saṁskṛ, que significa literalmente ‘purificação’, ‘perfeição’, da qual, aliás, procede também a palavra saṁskṛtaṁ, que aliás significa ‘sânscrito’, em sânscrito.
No Yogasūtra, no entanto, esse termo possui um significado bem diferente: o de ativador dos movimentos da psiquê.
Nesse sentido, os saṁskāras são as forças subconscientes que, baseadas em memórias ou desejos advindos das ações passadas e, estocados na mente subconsciente, dão lugar a novos pensamentos e emoções.
Todas as ações (karmas) deixam como resultado essas impressões subliminares.
Esses saṁskāras ficam armazenados no subconsciente, ‘amadurecendo’ e aguardando a condição apropriada para se manifestarem na forma de atividade volitiva, gerando vṛttis que, por sua vez, irão produzir novos karmas.
Para Patañjali, portanto, os saṁskāras são as sementes dos pensamentos e emoções que, uma vez ‘maduros’, irão produzir novos pensamentos, desejos e vontades, mantendo em funcionamento a roda do saṁsāra, aprisionando e condicionando o ser humano.
De que maneira, então, funciona o asamprajñata samadhi? Este tipo de iluminação refere-se a algum estado em que há “perda de consciência”, como já foi sugerido por alguns autores? [1]
O erudito Surendranath Dasgupta explica este ponto em sua obra Yoga as Philosophy and Religion [2]:
“Este estado, assim como os outros estados do tipo samprajñāta, é um estado positivo da consciência, e não um mero estado de vacuidade de objetos ou de negatividade.
“Neste estado, as características inerentes aos demais estados desaparecem, e somente suas potencialidades permanecem vivas”.
Neste estado-conhecimento de Puruṣa, o praticante permanece em sua real natureza (svārūpaḥ), como testemunha (sākṣi), plenamente consciente de si e do todo.
O objetivo que o yogi tem, neste tipo de absorção é estabelecer-se na sua real natureza.
Os limites do asamprājñāta samādhi
Muito embora possa afirmar-se que neste estado exista uma suspensão temporária da identificação com os processos de citta, seria errôneo acreditar que isto possa conduzir a um estado de suspensão permanente da atividade mental.
Muito menos, que o yogin se torne uma espécie de alienado, incapaz de viver uma vida útil e produtiva no mundo.
Noutras palavras, depois da profunda experiência meditativa do asamprājñāta samādhi a pessoa, necessariamente, sempre volta para as experiências de vigília, sonho e sono nas quais transcorre toda vida humana.
Portanto, não devemos apostar todas as nossas fichas nessa experiência, por interessante ou sedutora que ela seja. Lembremos sempre que o objetivo final do Yoga é kaivalya ou mokṣa, a liberdade.
Lembremos também que essa liberdade transcende qualquer estado de consciência ou experiência. Mokṣa é a apreciação de si mesmo como livre de limitações.
O asamprājñāta samādhi é chamado igualmente por Patañjali nirbīja samādhi, ou absorção ‘sem semente’, ou sem apoio.
As virtudes do asamprājñāta samādhi
Quando este estado tem lugar, todas as ‘sementes’ das aflições (saṁskāras) e seus efeitos são ‘queimadas’, evitando assim o nascimento de novos processos mentais (vṛttis) e dissolvendo assim a identificação com eles.
Transcendendo os samādhis reflexivos (samprājñāta), as propensões subconscientes que formam a raíz da ignorância sobre si mesmo tornam-se inativas e a psiquê (citta) deixa de se deixar arrastar para o exterior, dirigindo-se naturalmente o foco no Conhecedor (Puruṣa).
O ensinamento essencial do Yoga, milênios antes da era de Patañjali, já apontava para esta busca pelo autoconhecimento.
Na Bṛhadāraṇyakopaniṣad (III:4.1), o sábio Yājñavālkya deixou uma importante dica sobre a maneira que o yogi tem de conhecer a si mesmo. Quando inquirido pela sua esposa Maitreyī sobre os meios para o conhecimento do Ser, responde:
“Você não pode ver aquele que vê o que é visto. Você não pode ouvir aquele que ouve o que é ouvido. Você não pode pensar naquele que pensa o que é pensado.
“Você não pode compreender aquele que compreende o que é compreendido. Ele é seu próprio Ser, e está em tudo. Afora ele, o resto é irrelevante”.
O asamprājñāta e a liberdade
Assim, o Yoga e conseqüentemente o asamprājñāta samādhi, nos conduzem para perto da emancipação (kaivalya).
Esse kaivalya produz uma transformação pela qual nos livramos das limitações da vida do incessante fazer (vyavāhara) e das coisas do ego, sem precisarmos renunciar ao mundo para alcançar esse objetivo.
Todas as práticas do Yoga, incluíndo-se o sistema óctuplo ensinado pelo sábio Patañjali nesta obra, têm como objetivo auxiliar o yogin no caminho progressivo que vai desde a identificação com a egoidade à desidentificação (nirodhaḥ), ou consciência de Si Mesmo.
Assim, as fontes de aflição e sofrimento (kleśas) não são eliminadas através de algum exercício específico, mas através daquilo que Vyāsa, no comentário deste aforismo, chama de supremo desapego (pāravairāgya).
O desapego é um processo gradual: ao retornar do asamprājñāta para o estado de vigília, o yogin olha para o relógio e percebe que, havendo transcorrido um certo tempo na absorção, o estado de suspensão da identificação com os vṛttis (nirodhaḥ) teve lugar.
O paradoxo: o asamprājñāta não é uma experiência
Sendo o asamprājñāta samādhi um “estado-conhecimento”, ele não pode ser considerado uma experiência.
Não há, portanto, lembranças a ser ‘carregadas’ desde essa profunda absorção, de volta para as demais experiências, como a vigília, o sonho ou o sono.
Esse estado de desapego em relação à egocidade, aos karmas, vṛttis e saṁskāras, é o asamprājñāta samādhi.
Essa atentividade desapegada é cultivada pelo praticante não somente durante a prática da meditação, mas igualmente durante a vida cotidiana.
Frutos deste samādhi
Enquanto realizando suas tarefas, o praticante permanece no estado de nirodhaḥ, integrando progressivamente o asamprājñāta na vigília, para viver a vida de Yoga. Tal praticante é chamado jīvaṅmukta, ‘liberado em vida’.
A Haṭhayoga Pradīpikā , um tratado medieval sobre Haṭhayoga, nos dá uma bela definição do jīvaṅmukta:
“O yogi em samādhi não é atingido pelo processo do tempo (a morte), nem pelo fruto das ações (karma); nada nem ninguém pode afetá-lo.
“O yogi em samādhi não recebe nada através dos sentidos; não conhece a si mesmo nem aos demais.
“Aquele cuja mente não está nem desperta nem dormente, livre das lembranças e do esquecimento, para quem nada permanece quieto o ativo, é realmente um liberado (jīvaṅmukta).
“O yogi em samādhi é insensível ao calor e ao frio, intocado pela dor ou o prazer, a honra ou o impropério”. IV:108-111.
Cabe lembrar que a persona do jīvaṅmukta não se evapora, não desaparece, assim como não desaparece o mundo objetivo para ele quando entra nessa condição.
Conclusões
O que acontece no asamprājñāta samādhi é um “estado-conhecimento” no qual se aperfeiçoa e expande a identidade do yogi.
Liberado do sofrimento inerente à identificação com as propensões subliminares, condicionamentos, pensamentos e emoções, o jīvaṅmukta adquire um senso expandido da sua própria identidade.
Dessa maneira, ele integra em si mesmo virtudes como a não-violência, a compaixão e a sabedoria. Ainda enxerga a si próprio, não mais como uma personalidade limitada e fora de foco, mas como o Ser Ilimitado que é de fato.
O jīvaṅmukta vive harmoniosamente no mundo, ajudando os demais e sentindo-se totalmente em casa, onde quer que ele esteja.
A liberdade do yogi não deve ser compreendida aqui como negação ou fuga das próprias responsabilidades, mas como viver e agir no mundo cotidiano em consciência de Si mesmo, consciência de Puruṣa.
A liberdade é um reflexo dessa transformação interior do yogi.
Essa cognição de Si Mesmo, Puruṣa, deve por sua vez operar em consonância com as dimensões ética e afetiva que esta visão nos propõe, para formar uma espiritualidade única, abrangente e integrada.
Nela, a transformação da vida do praticante funciona por sua vez como um agente transformador das vidas dos demais.
Assim, pelo menos segundo a visão que nós temos deste texto de Patañjali, o Yoga é um sistema que reconcilia o compromisso com a espiritualidade, a transformação interior e o auto-conhecimento (nivṛttimārga), com a vida de responsabilidades no mundo cotidiano (pravṛttimārga).
॥ हरिः ॐ ॥
[1] Esses autores foram J. H. Woods, em sua obra The Yoga System of Patañjali, Harvard Oriental Series, Cambridge, 1914, p. 12; e G. Jha, no livro The Yoga Darshana, p. 20, Rajaram Tukaram Tatya, Bombay, 1907.
[2] ‘Yoga como Filosofia e Religião’, ótima obra porém, infelizmente, sem tradução para o português, editada por Trubner and Co., Londres, 1924, p. 124.
॥ हरिः ॐ ॥
Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Pedro Kupfer, a palavra é descontinuidade.
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