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Sobre o karma

Um nascimento humano envolve necessariamente alguma combinação de méritos e deméritos. Não existe nascimento feito apenas pelo fruto de méritos

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O resultado dos karmas tem dois aspectos: o visível e o não visível, drishta e adrishtaphalam. A árvore é o fruto da semente. A lei do dharma, aplicada na convivência do homem com a Natureza, diz coisas como esta: se você for cortar uma árvore, terá que plantar dez para compensar o dano.

Papakarmas são as ações que devem ser evitadas. As ações que estiverem em conformidade com o dharma são chamadas punya. Os frutos dessas ações serão agradáveis, enquanto que os frutos das ações que devem ser evitadas, serão desconfortáveis ou aflitivos.

O karta, o agente das ações, é o responsável tanto pelos resultados agradáveis como pelos não agradáveis. Esses méritos e deméritos são creditados em sua ‘conta kármica’. Alguns deles frutificam nesta vida e outros não. Existem rituais e ações como a caridade, que se fazem para neutralizar os frutos indesejáveis das ações inadequadas. Um nascimento humano envolve necessariamente alguma combinação de méritos e deméritos. Não existe nascimento feito apenas pelo fruto de méritos. Isso significa que em cada coisa, por boa que seja, há envolvido algum grau de papa e algum grau de punya. Papa e punya andam sempre juntos.

Segundo contam algumas escrituras, seres divinos e semi-divinos, como apsaras, gandharvas e kinnaras, são bhoktas, experienciadores: eles apenas vivem esgotando os méritos das ações adequadas feitas em vidas anteriores. Porém, os humanos enfrentamos situações agradáveis e não agradáveis, produto da combinação única de papa e punya na vida de cada um.

O adrishtaphalam, o resultado não visível das ações que forem feitas em conformidade com o dharma, poderão produzir uma vida confortável, como bhokta, desfrutador, na próxima encarnação.

O karta é o fazedor, o agente das ações. O karta pode escolher, fazer, fazer diferente, ou deixar de fazer. Essa liberdade de fazer, de escolher, esse livre arbítrio, é o que torna único o ser humano. Uma vaca não pode fazer doutorado. Uma planta tem suas próprias limitações. Olhe para o corpo humano: por exemplo, um homem vive a vida inteira dentro do dharma. Aqueles que viverem a vida dentro do dharma são não apenas consumidores, mas igualmente contribuintes para uma sociedade melhor. Essa capacidade é dada, através do livre arbítrio, para cada homem. Os deuses não têm essa capacidade de escolha. Os animais tampouco têm essa escolha.

Os seres vivos assumem seus diferentes corpos de acordo com seus próprios karmas. A cada vez que ganhamos um corpo humano, nos é dada mais uma chance para ganharmos a liberdade. Karma, janma, karma, janma, karma, janma: ação, nascimento, ação, nascimento, ação, nascimento…

Então, olhe o que você tem ao invés de se lamuriar pelo que não tem. Ao invés de se queixar por que você tem um copo meio vazio, pense que você tem, pelo menos, um copo meio cheio. Você é totalmente aceitável, como você é. Cultive então a auto-aceitação. Uma coisa que devemos ponderar, é que não podemos nos separar da totalidade, daquilo que é ilimitado. Não podemos renunciar àquilo que é nosso.

Quando você vai viajar, tem que levar alguns remédios, para o caso de ter alguma dor de cabeça, ou seja, algum punya para ser exaurido. Fazemos ações, como viagens e peregrinações por que esperamos viver alguma coisa agradável ou útil. Ninguém sai de casa para sofrer ou passar dificuldades.

Auto-aceitação e não auto-aceitação são possibilidades. Continuar nos equivocando ou insistindo nos mesmos erros, como olhar para nós mesmos como pessoas não aceitáveis, é uma questão de escolha. A auto-aceitação é essencial, para podermos olhar para nós mesmos como pessoas plenas. Essa é a solução para qualquer problema humano.

O nosso karma pode nos levar a nascer em lugares onde, por exemplo, não haja liberdade para escolher a própria religião, ou onde não haja chance de escolha. Portanto, se você nasceu num país livre, não desperdice suas chances.

Aceite o problema básico da não auto-aceitação e você o neutraliza. Os méritos kármicos nos ajudam a viver uma vida no dharma e podem nos ajudar a nascer no lugar certo. O Veda fala sobre meios e fins, sobre a lei do karma, sobre certas formas de meditação. A grandeza desta tradição é que nós podemos ensinar, não um tema abstrato, mas algo que tem a ver com o fato de você estar vivo, e como viver essa vida em harmonia com o dharma.

Os Shastras nos falam sobre alguns dos argumentos tradicionais que elaboram sobre esse conhecimento, a liberdade e os meios para obté-la. Para termos libertação (moksha), o meio de conhecimento é o conhecimento de si mesmo, Brahmavidya. O karma nos prepara e nos dá a chance, as condições, para que esse processo tenha lugar.

Bhavah chakravadiriyate é uma expressão que aponta para a roda ou o ciclo das sucessivas reencarnações. A nora, o moinho de água, é um ótimo exemplo do que o samsara é: os baldes, amarrados à roda, ora sobem, ora descem; ora cheios de água, ora vazios. Da mesma maneira atma, ora adquire um corpo para viver uma encarnação, ora o abandona, adquire um novo corpo, para depois o abandonar, e assim sucessivamente.

O conhecimento liberta. A ignorância condiciona. Eu acho que eu não sou aquele que quero ser, e que devo me tornar algo diferente do que sou para poder ser feliz. Esta é a maior crença que nos prende na ignorância existencial, e que assume diversas formas de acordo com o karma de cada um.

O conhecimento me liberta da sensação de ser limitado, condicionado. Karma Yoga e sannyasa, o Yoga da ação consciente e a renúncia, são os dois caminhos válidos para sair da ignorância. Sri Krishna, na Bhagavad Gita, recomenda o caminho do Karma Yoga para se adquirir moksha. Você não precisa renunciar para ser livre. Você não precisa se transformar em algo diferente daquilo que é para ser feliz.

O antahkarana shuddhi, a purificação do psiquismo e a consciência, é essencial para se obter moksha. para que um novo nascimento tenha lugar, é preciso que os karmas estejam maduros. Uma vez que eles tiverem sido exauridos, a libertação acontece.

A palavra kriya designa, dentre outras coisas, as ações e seus resultados, agradáveis e não agradáveis. Esses frutos serão experienciados pela pessoa, na medida em que ela se identificar com o papel do karta, o agente das ações. Eu posso agir em conformidade com o dharma, ou contra ele, para realizar meus desejos de ter riqueza, conforto, segurança, prazer, etc. O resultado será diferente em cada um desses casos. Porém, sempre que houver méritos e deméritos combinados, haverá novos nascimentos sucessivos.

Em todo caso, a auto-imagem que nasce da ignorância, está vinculada ao fato de eu achar que sou o karta, ou o bhokta, o agente das ações, ou aquele que desfruta dos seus resultados.

Todos somos humanos. Cada um de nós sofre um tipo de pressão diferente, um tipo de condicionamento diferente. Em função das ações que fazemos desde o nosso livre arbítrio, construímos o nosso ‘estado de conta’, através do qual iremos ganhar, futuramente, diferentes corpos, de acordo com o resultado ou a síntese das nossas ações meritórias e não meritórias. Assim, vamos encarnando sucessivamente em variados corpos, movendo-nos, aparentemente em círculos, aparentemente sem sairmos do lugar, como uma pessoa andando numa bicicleta estacionária.

Esta existência é chamada samsarachakrah, a roda do samsara, dos sucessivos nascimentos, vidas e mortes.

O conhecimento se opõe a ignorância. A idéia de ser o karta, o agente das ações, é a razão do sofrimento. A ignorância não se opõe ao karma. Da ignorância, nascem as ações precipitadas e seus resultados indesejáveis. A principal causa do sofrimento é a ignorância, e apenas ela. A distração é um dos frutos da ignorância. Ela é removida através do conhecimento, da mesma forma que a luz remove as trevas. A distração produzida pela ignorância é a causa do nascimento e do sofrimento. Essa distração deriva do resultado da equação mérito-demérito que, por sua vez, é o resultado dos desejos que, por sua vez, são o resultado da necessidade de ser diferente do que se é que, por sua vez, é o resultado da ignorância existencial.

Devo aceitar que a ignorância precisa ser removida. A renúncia não remove a ignorância sozinha. O Karma Yoga não remove a ignorância por si mesmo. Se não houver conhecimento envolvido nas ações, elas, por si mesmas, não irão produzir liberdade.

Se nós não somos de fato o ilimitado, o que somos? A vida seria um desperdiço. Siga o dharma e desfrute do mundo, da melhor maneira possível. O dharma guia aquele que conhece a si mesmo como sendo já livre de toda limitação. Quando a destruição da ignorância acontece, somente brilha a luz do conhecimento. O karma nasce da identificação com o papel do karta.

Você não pode apagar um incêndio usando gasolina, mesmo se a gasolina for líquida como a água. Concluir que por ser um líquido, ela pode apagar o fogo, pode ser equivocado. O fogo vai gostar e o incêndio vai continuar, pior. Não podemos então, realizar mais ações na esperança de que elas nos livrem da ignorância. Seria como tentar apagar o incêndio jogando mais combustível nele. O único que remove a ignorância é o conhecimento.

Palestra proferida por Swami Dayananda no Ashram de Rishikesh, em 14 de março de 2009. Eventuais erros conceituais ou de tradução devem ser creditados ao digitador, Pedro Kupfer.

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Swāmi Dayānanda Saraswatī (1930-2015) ensinou a sabedoria tradicional do Vedanta por cinco décadas, na Índia e em todo o mundo. Seu sucesso como professor é evidente no sucesso dos seus alunos: mais de 100 deles são agora Swāmis, altamente respeitados como estudiosos e professores.

Dentro da comunidade hindu, ele trabalhou para criar harmonia, fundando o Hindu Dharma Acharya Sabha, onde chefes de diferentes seitas podem se reunir para aprender uns com os outros.

Na comunidade religiosa maior, ele também fez grandes progressos em direção à cooperação, convocando o primeiro Congresso Mundial para a Preservação da Diversidade Religiosa.

No entanto, o trabalho de Swāmi Dayānanda não se limitou à comunidade religiosa. Ele é o fundador e um membro executivo ativo do All India Movement (AIM) for Seva.

Desde 2000, a AIM vem trazendo assistência médica, educação, alimentação e infraestrutura para as pessoas que vivem nas áreas mais remotas da Índia.

Havendo crescido em uma pequena vila rural, ele próprio entendeu os desafios particulares de acessar a ajuda enfrentada por pessoas de fora das cidades. Hoje, o AIM for Seva estima ter ajudado mais de dois milhões de pessoas necessitadas em todo o território indiano.

subhashita

Subhāshitas, Palavras de Sabedoria

Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
  ·   1 minutos de leitura

4 respostas para “Sobre o karma”

  1. Oi Pedro, tão sabido e as vezes deixamos de viver o que é tão claro. Obrigada por partilhar. Abraços, Adri.

  2. Olá pessoal! Quando entrei hoje no Yoga.pro me deparei com esse artigo e por um momento pensei em toda a história da filosofia, desde a GRécia antiga até atingir o ápice em Schopenhauer, Nietzsche e mais recentemente com Cioran. Confesso que me senti como se estivesse voltando à idade da pedra. Foi uma tremenda coincidência, pois eu havia terminado de postar um texto no meu blog refutando todas essas idéias. Então resolvi postar o texto na íntegra. Espero que possamos ter um debate “saudável” sobre essas idéias.Um abraço a todos!
    Flávio.
    Yoga e Fé

    O filósofo romeno Emil Cioran disse certa vez que a diferença fundamental entre a filosofia grega e a indiana é que enquanto aquela busca simplesmente a investigação da verdade, esta se empenha na tarefa de encontrar meios de tornar a existência suportável. Acontece que esse empenho, em muitos casos, toma como base sofismas filosóficos que jamais puderam ser constatados através da análise do mundo fenomênico.
    Muitas pessoas que trabalham com yoga, por exemplo, sentem necessidade de ter uma visão otimista da vida e de passar para os alunos essa mesma visão. E, numa tentativa desesperada de fazer do mundo um lugar justo (o que convenhamos é muito difícil!), apegam-se aos mais diversos sofismas: livre-arbítrio, lei do karma, reencarnação, etc… Alguns chegam ao ponto de sugerir que não existe sofrimento injusto e enfatizam o aspecto didático das dores humanas. Isso significa dizer que a criança nordestina que já nasce passando fome, pois a mãe não tem nem leite para alimentá-la, sofre porque está ?pagando pelo que fez em encarnações anteriores?. E a pena está sendo aplicada justamente agora, no auge de sua inocência. Convenhamos: esta é uma visão fantasiosa que consegue ser mais cruel e injusta do que a própria realidade. Sendo assim fica a pergunta aos crentes: O que esse recém nascido poderá fazer através do seu ?livre-arbítrio?? Qual o ?aspecto didático? desse sofrimento?
    Pessoalmente, prefiro acreditar que essa criança sofre por falta de consciência de seus progenitores que a colocaram no mundo sem as mínimas condições de sobrevivência. Sofre porque os governantes são negligentes em relação à fome e à miséria. Porque a ganância desenfreada de uns é capaz de construir um império às custas do sofrimento dos mais fracos.
    Essa idéia de que ?não existe sofrimento injusto? e que ?tudo está no seu devido lugar” só interessa aos que estão no poder e querem que o povo se torne cada vez mais passivo e subserviente. Em seu livro: ?A Tradição do Yoga? , Georg Feuerstein diz, a respeito do sintema de castas indiano: ?Assim como nós justificamos o os princípios democráticos com a afirmação do valor do indivíduo, o sistema de castas se justifica pela lei do karma: a condição de cada pessoa nessa vida é determinada por seus quereres e ações passadas. Os brâmanes porque praticam a virtude e seguiram a vida espiritual em vidas passadas. Os intocáveis são intocáveis porque não tiveram, no passado, motivação suficiente para aspirar a uma vida superior, ou talvez porque tenham cometido atos muito maus.? Dessa forma, podemos perceber que na Índia, a lei do karma funciona mais ou menos como um curral, um muro artificial construído para separar as castas e fazer com que os seus 400 milhões de miseráveis aceitem essa situação de forma Passiva. Posso dizer, sem nenhuma dúvida, que se eu acreditasse em tudo isso, certamente nem precisaria praticar yoga. No entanto tenho procurado no Yoga a força necessária para poder encarar a realidade sem necessidade de nenhum subterfúgio, pois como diria o grande filósofo alemão Friedrich Nietzsche: ? O verdadeiro valor de um homem está ligado a quantidade de verdade que ele consegue suportar?.

  3. Querido Pedro, namaste! Quanta generosidade da sua parte compartilhar conosco o conhecimento em primeira mão! obrigada!
    Tereza

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