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A Cosmovisão do Tantra

O Trika propõe uma cosmovisão peculiar, muito rica em elementos, que explica a criação como a conhecemos, através de um modelo que inclui 36 tattvas ou princípios de realidade.

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Cosmovisão

O Trika propõe uma cosmovisão peculiar, muito rica em elementos, que explica a criação como a conhecemos através de um modelo que inclui 36 tattvas ou princípios de realidade. 

A emanação desses elementos é Līlā, o Jogo Cósmico, que é a Dança de Śiva, que acontece através de Spanda, a vibração da sua energia criativa. 

O sistema de 36 tattvas do Trika exposto em śāstras como o Tantrāloka ou no Netratantra é ao mesmo tempo similar e diferente da explanação que se dá em obras do Vedānta como Ātmabodha ou Tattvabodha e em textos de Sāṅkhya como o Sāṅkhyasūtra ou a Sāṁkhyakārikā.

Mas isso não deve nos desencorajar, apesar da natural confusão que possa surgir na mente do praticante, uma vez que cada sistema tem a sua beleza, a sua lógica interna e o seu método.

Essas diferenças não apresentam nenhuma incoerência ou fragilidade, mas são sinais da ampla liberdade que os sábios do passado da Índia sempre tiveram para fazer as suas próprias investigações, tirar as suas próprias conclusões e expressar o mesmo ensinamento através de diferentes pontos de vista.

Esse ensinamento basilar é em síntese, e citando o sábio poeta Sadāśiva Brahmendra, sarvam brahman ayam: “Tudo o que aqui está é o Ilimitado”.

Essa liberdade e aparente caos na diversidade das escolas de vida indianas, chamadas darśanas, explica-se através da antiguidade e vastidão do ensinamento, que acumula vários milênios de investigação. 

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Para mais além das diferenças, no entanto, o que vale é que, unanimemente, todas essas escolas irão propor um estilo de vida em harmonia consigo mesmo, com o mundo e com os demais, além de sempre postular as práticas meditativas e os valores do Yoga como elementos fundamentais dentro desse modo de viver.

Eles são as expansões de māyā e devem ser compreendidos adequadamente para podermos encontrar o nosso lugar na Ordem de Śiva e vivermos tranquilamente nesse lugar. 

A lista completa dos 36 princípios segue abaixo. 

1-2) Śiva e Śakti, o Ilimitado Não-Manifestado e a Consciência dele (Eu e a consciência do Eu). 

3-4) Sadāśiva (ou Sadākhya) e Īśvara (também chamado Bindu), o Ser e a Natureza. 

5) Śuddhavidyā, o conhecimento puro.

6) Māyā, o poder de ocultação. 

7-11) Os cinco kañcukas, “armaduras” ou camadas: 7) kalā, o poder da limitação, 8) niyatī, o poder da causalidade, 9) o poder do desejo, rāga, 10) vidyā, o poder de conhecimento limitado,  e 11) kāla, o poder do tempo.

12) Puruṣa, o indivíduo.

13-15) O órgão interno, antaḥkaraṇa, que consta de três tattvas ou componentes: buddhi, ahaṅkāra e manas, ou inteligência, ego e mente, respectivamente. 

16-20) Os cinco órgãos de conhecimento, jñānendriyas, do mais sutil ao mais denso: ouvidos, pele, olhos, língua e nariz: śrotra, tvāk, caksus, rasana e ghrāna

21-25) Os cinco órgãos de ação, karmendriyas, do mais sutil ao mais denso: fala, preensão, locomoção, reprodução e excreção: vāk, pāni, pāda, upaṣṭhā e pāyu

26-30) Os cinco sentidos, tanmātras, elementos sutis: audição, tato, visão, paladar e olfato: śabda, sparśa, rūpa, rāsa e gandha

31-36) Os cinco elementos, bhūtas, do sutil ao denso: espaço, ar, fogo, água e terra: ākaśa, vāyu, agni, apaḥ e pṛthivī.

A Síntese da Cosmovisão

O Universo surge de Śiva, o Ilimitado, que é você mesmo, que é cada um de nós, manifestados neste momento na forma da diversidade dos corpomentes. Enquanto humanos, encarnados nestes corpos, precisamos lembrar que somos Śiva, o Ilimitado. 

Nada nem ninguém pode negar isso nem opor-se a nós. Nada nem ninguém irá nos ajudar, por outro lado: o esforço por sair do ciclo incessante do saṁsāra, das aflições e do sofrimento, é algo que cada um deve fazer sozinho e por si mesmo. 

Não há tábua de salvação. Não há milagre nem anjo para nos salvar. Só existe o Mahālīlā, o jogo cósmico, que é a dança de Śiva. Na peculiar condição humana, é preciso desvendar o véu de māyā, o aparente, para perceber o Real em toda a sua magnificência. O véu de māyā é como um sonho: precisamos acordar dele.

Ao sonhar, vivemos todo tipo de experiências: algumas agradáveis e outras não. Durante o sonho, como sonhadores desfrutamos daquilo que é agradável e sofremos quando surgem pesadelos.

Porém, quando acordamos na manhã seguinte, todos aqueles conteúdos, desejáveis ou indesejáveis, simplesmente se desintegram. 

Da mesma maneira, ao vivermos no saṁsāra, fruímos as experiências que nos são agradáveis e sofremos com as que nos produzem aflição. Assim como no sonho, precisamos despertar desta vigília distraída para a vigília lúcida. 

A saída desse jogo é feita através da compreensão da Ordem de Śiva e do nosso lugar nela. A saída do jogo consiste em perceber o jogo como jogo, a dança da vida como a dança da vida. Nada mais.  

Que possamos renunciar aos condicionamentos limitadores. Que possamos nos desapegar das coisas do ego. Que possamos abrir mão da ignorância sobre a nossa natureza real, que é Śiva, que é Saccidānanda, Realidade, Consciência e Amor. 

Que possamos viver equânimes, calmos e felizes, com o mantra Śivo’ham, “sou Śiva”, constantemente nos lábios, na mente e no coração.

Que essa seja a nossa volição e o nosso propósito. Que esse seja o nosso saṅkalpa. Acordemos do sonho agora.

॥ हरिः ॐ ॥

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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2 respostas para “A Cosmovisão do Tantra”

  1. Como sempre, a reflexão é útil e agradável e leva à profundidade.
    Eu só acrescentaria que talvez só e juntos sejam dois extremos do mesmo fio da presença limitada do Ilimitado.
    Assim como a presença onírica e de vigília são dois extremos, duas funções diferentes, do mesmo fio do grau de atenção e de sujeição à causalidade dessa presença.

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