O Gāyatrī é um dos mantras mais célebres e potentes da ciencia do som sutil, presente no Yoga e noutras expressões da espiritualidade indiana, desde o hinduísmo ao budismo, do jainismo ao sikhismo.
Existem inúmeras interpretações diferentes dele. A que veremos aqui vem de um śāstra chamado Gāyatrī Hṛdayam, que está escrito na forma de um diálogo entre o yogin Yājñavālkya e Brahmā, o criador.
O nome Gāyatrī deriva do chhandas, a métrica na qual este mantra está composto. Essa métrica ocupa uma boa parte dos mantras do Ṛgveda, e consiste em três linhas com oito sílabas cada uma.
Esta é considerada a métrica mais sagrada. Dela é dito Gāyatrī chandasām mātā: o Gāyatrī é a mãe de todas as demais métricas. O Gāyatrī mantra aparece no terceiro maṇḍala do Ṛgveda, (III:62-10).
Ele diz assim:
ॐ भूर्भुवः स्वः । तत्सवितुर्वरेण्यं ।
भर्गो देवस्य धीमहि धियो यो नः प्रचोदयात् ॥
Oṁ bhūr bhuva svāḥ || tat savitur vareṇyam |
bhargo devasya dhīmahi | dhiyo yo naḥ pracodayāt ||
“Oṁ. Contemplemos o esplendor do divino Sol vivificante,
[invariavelmente] presente na terra, na atmosfera e no céu.
Que ele ilumine a nossa visão”.
O Gāyatrī está vinculado, assim, com a fonte da vida, Savitri Devī, também chamada Mātāveda, ou a Mãe dos Vedas. É representada com cinco rostos, e possui os atributos de Viṣṇu, Gaṇeśa e outros deuses.
Elementos do Gāyatrī
Pense neste texto como uma maneira de compreender e aprender o significado do mantra, corrigir algum eventual erro de pronúncia e/ou aprofundar o seu conhecimento sobre ele para potenciar a sua meditação.
As 14 palavras que compõem o mantra são as seguintes:
Oṁ – bhūḥ – bhuvaḥ – svaḥ – tat – savituḥ – vareṇyam – bhargaḥ – devasya – dhīmahi – dhiyaḥ – yaḥ – naḥ – pracodayāt
Para compreender o Gāyatrī, ou as outras formas desse mantra que veremos na sequência, há três palavras fundamentais: vareṇyam (substituída por vidmahi nas outras variações deste mantra), dhīmahi e pracodayāt.
Mas antes de entrarmos nesse tema, vejamos o significado de cada uma destas palavras, separadamente.
Oṁ não é exatamente uma palavra, mas um símbolo sonoro não-verbal, um lakṣaṇa ou “apontador” para a Consciência Ilimitada.
Seus três elementos a+u+ṁ, revelam para a presença invariável do Ser em todos os estados de consciência ou experiências, segundo a Māṇḍūkyopaniṣad. [Saiba mais sobre o tema aqui]
Há muitas maneiras diferentes de interpretar a tríade formada pelas três próximas palavras, bhūḥ, bhuvaḥ e svaḥ.
Bhūḥ é a terra, o mundo em que vivemos. Também aponta para o microcosmos. E para o corpo físico denso, sthūlaśarīra.
Bhuvaḥ é a atmosfera, o espaço intermediário, chamado antarikṣa lokaḥ, ou o espaço em que o mundo material existe. Igualmente representa a dimensão humana e o corpo sutil, sūkṣmaśarīra.
Svāḥ aponta para o espaco, o macrocosmos, o plano mais elevado da existência e o corpo causal, kāraṇaśarīra.
No plano humano, a tríade bhūḥ-bhuvaḥ-svaḥ aponta para a possibilidade de ir do denso para o sutil, de deixar de nos focar nas coisas banais para descobrir a dimensão mais sagrada da existência.
Noutras palavras, para que possamos ir da imaturidade emocional para mokṣa, a liberdade, que é o objetivo do Yoga.
Repare que esses três planos de existência são mencionados numa ordem muito específica, indo do mais denso para o mais sutil.
É assim que o Yoga funciona, nos levando das distrações habituais com as coisas mais perceptíveis para a apreciação de nós mesmos como o que realmente somos, o Ser Ilimitado.
Dhīmahi quer dizer “meditemos sobre”. Sobre o que devemos meditar? Sobre tat bhargaḥ, “esse resplendor”.
Vareṇyam bhargaḥ é o esplendor mais elevado, o brilho autoefulgente. E quem é que brilha por si mesmo? Devasya. Esse brilho pertence então a devasya, a própria Consciência Ilimitada.
Ela é apontada pelo termo savituḥ, que se refere à fonte da vida. Esse devasya é então o próprio sol, fonte de a existência do sistema solar, do nosso planeta e de tudo o que ele contém.
E qual seria o propósito para essa meditação? Qual seria o benefício dela? Pracodayāt, que quer dizer conduzir, levar, impulsar.
Levar o que, e para onde? Levar as nossas mentes, naḥ dhiyaḥ, para a contemplação do Ilimitado. O mantra está conjugado na primeira pessoa do plural, nós.
E em que direção as nossas mentes devem ser levadas? De bhūḥ para bhuvaḥ e de bhuvaḥ para svaḥ. Do denso para o sutil, dos condicionamentos à liberdade.
Em síntese, o mantra diz: meditemos no mais elevado esplendor da fonte da vida. Que ela conduza as nossas mentes do denso para o sutil, dos condicionamentos para a liberdade. Agora.
Outras formas do Gāyatrī estão compostas por palavas similares, estando sempre o foco naqueles três elementos essenciais que mencionamos acima: vidmahi, dhīmahi e pracodayāt. Esses três termos têm os seguintes significados:
- vidmahi é “que possamos reconhecer”;
- dhīmahi quer dizer “meditemos sobre”;
- pracodayāt significa “que sejamos impulsionados”.
Assim, por exemplo o Gāyatrī de Gaṇeśa diz:
Oṁ Ekadantāya vidmahe |
Vakratuṇḍāya dhīmahi |
tanno dantīḥ pracodayāt ||
“Oṁ. Voltemos nossos pensamentos (vidmahe) para aquele com uma presa (Ekadanta). Que aquele que tem a tromba curva (Vakratuṇḍa) ilumine nossas mentes (dhīmahi). Que aquele dotado de uma presa nos conduza no caminho reto (pracodayāt)”.
Já o Gāyatrī mantra de Śiva diz:
Oṁ tat puruṣāya vidmahe |
mahādevāya dhīmahi |
tanno rudraḥ pracodayāt ||
“Oṁ. Contemplemos aquele Puruṣa, o Ser Ilimitado. Meditemos sobre Mahādeva. Que ele nos inspire no caminho reto (pracodayāt)”.
E o Gāyatrī de Lakṣmī é assim:
Oṁ mahalakṣmyai ca vidmahe |
viṣṇupatnyai ca dhīmahi |
tanno lakṣmī pracodayāt ||
“Oṁ. Contemplemos a Grande Lakṣmī. Meditemos sobre a esposa de Viṣṇu. Que ela inspire a nossa visão”.
Há muitos outros gāyatrīs dedicados às diferentes deidades ou arquétipos, todos contendo os três elementos essenciais que acabamos de mencionar, vidmahi, dhīmahi e pracodayāt.
Intenção do Gāyatrī mantra
Os ṛṣis, sábios da Idade Védica, perceberam em suas meditações que a vocalização desta combinação de sílabas gera poder no indivíduo e inspira sabedoria, motivando-o a agir corretamente.
A sabedoria e o poder intrínsecos ao mantra nos permitem captar a unidade de todas as coisas. Na Chāndogyopaniṣad (III:12.1-4), o Gāyatrī aparece como o símbolo do Ilimitado, presente em tudo e em todos:
गायत्री वा ईद सर्वं भूतं यदिदं किंच वाग्वै गायत्री वाग्वा इद सर्वं भूतं गायति च त्रायते च ॥ १ ॥
या वै सा गायत्रीयं वाव सा येयं पृथिव्यस्या हीद सर्वं भूतं प्रतिष्ठितमेतामेव नातिशीयते ॥ २ ॥
या वै सा पृथिवीयं वाव सा यदिदमस्मिन्पुरुषे शरीरमस्मिन्हीमे प्राणाः प्रतिष्ठिता एतदेव नातिशीयन्ते ॥ ३ ॥
यद्वै तत्पुरुषे शरीरमिदं वाव तद्यदिदमस्मिन्नन्तः पुरुषे हृदयमस्मिन्हीमे प्राणाः प्रतिष्ठिता एतदेव नातिशीयन्ते ॥ ४ ॥
gāyatrī vā īdaṁ sarvaṁ bhūtaṁ yadidaṁ kiṁ ca vāgvai
gāyatrī vāgvā idaṁ sarvaṁ bhūtaṁ gāyati ca trāyate ca || 1 ||
yā vai sā gāyatrīyaṁ vāva sā yeyaṁ pṛthivyasyāṁ
hīdaṁ sarvaṁ bhūtaṁ pratiṣṭhitametāmeva nātiśīyate || 2 ||
yā vai sā pṛthivīyaṁ vāva sā yadidamasminpuruṣe
śarīramasminhīme prāṇāḥ pratiṣṭhitā etadeva nātiśīyante || 3 ||
yadvai tatpuruṣe śarīramidaṁ vāva tadyadidamasminnantaḥ
puruṣe hṛdayamasminhīme prāṇāḥ pratiṣṭhitā etadeva nātiśīyante || 4 ||
Realmente, o Gāyatrī é tudo o que existe aqui, seja o que for o existente.
A palavra é o Gāyatrī, pois a palavra canta e protege tudo o que aqui existe. || 1 ||
Realmente, aquilo que esta terra é, é o que este Gāyatrī é.
Pois ele é tudo o que aqui existe não se estende mais além. || 2 ||
Realmente, este Gāyatrī é o mesmo que o corpo humano.
Pois nele os prāṇas estão, e não se estendem mais além. || 3 ||
Realmente, aquilo que o corpo é, é o mesmo que o coração é.
Pois nele os prāṇas estão, e não se estendem mais além. || 4 ||
O mantra é uma prece para pedir iluminação para toda a humanidade, para que cada ser humano possa reconhecer a si mesmo como manifestação dessa mesma Consciência Ilimitada que é a fonte da vida, e que está manifestada na forma do sol, como centro do sistema solar, como suporte de todas as formas de vida na terra.
Que cada pessoa possa reconhecer que, mais além das diferenças, mais além das culturas, sociedades ou civilizações, mais além do ego e a trajetória de vida de cada um, todos os humanos, todos os seres vivos, somos o próprio Ilimitado, manifestado na forma destes diferentes corpomentes.
Diz Śrī Śaṅkarācārya na Vivekacūḍamaṇī (254):
जाति नीति कुल गोत्र दूरगं नाम रूप गुण दोष वर्जितम् |
देश काल विषया तिवर्ति यद् ब्रह्म तत्त्वमसि भाव यात्मनि ||
jāti nīti kula gotra duragaṁ
nāma rūpa guṇa doṣa varjitam |
deśa kāla viṣayā tivarti yad
brahma tatvamasi bhāva yātmani ||
“Para além de casta, credo, família ou linhagem, [medite]
naquele que não tem nome nem forma, que está além
do mérito e do demérito, aquele que está além do espaco,
do tempo e dos sentidos. Você é esse Ilimitado. Medite assim”.
Pronúncia correta e erros frequentes
Ao pronunciar, lembre por favor dos mahāprāṇas, os sons aspirados, bhūr, bhuva, bhargo, dhīmahi e dhiyo. Evite dizer būr, buva ou bargo.
Lembre igualmente que, no sânscrito, as letras “o” e “e” são sempre longas e fechadas. A letra “ū”, na palavra bhūḥ, é longa.
O ultimo “ā” em pracodayāt também é um som dīrgha, ou longo. Tome cuidado para pronunciar pracodayāt e não prashodayāt.
Ao pronunciar a palavra vareṇyam coloque a língua em direção ao palato ao pronunciar a letra “ṇ”.
Finalmente, repare no detalhe da pronúncia do visarga, a aspiração, quando você diz dhiyo yo naḥ pracodayāt. Essa aspiração assume o valor de um “f”.
॥ हरिः ॐ ॥
+ sobre o Gāyatrī
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॥ हरिः ॐ ॥
Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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