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Música indiana e devoção

O mantra é um recurso usado não apenas nas práticas meditativas do Yoga, mas também em muitas religiões, tanto orientais como ocidentais. O ser humano descobriu muito tempo atrás o poder transformador do som. A música em geral, e os mantras em particular, têm a potencialidade de levar o psiquismo humano a locais insuspeitados de paz e tranquilidade.

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Entrevista sobre música indiana e sua relação com o Yoga devocional, concedida ao portal Música Indiana Brasil, http://musicaindianabrasil.blogspot.com/, mantido por Sandro Shankara.

Música Indiana Brasil: Namaskār, Pedro, você poderia nos contar um pouco da sua história, como veio para o Brasil e como o Yoga entrou na sua vida?

Pedro Kupfer: A sociedade no Uruguai é bastante fechada. Como filho de uma família mista, de cristãos e judeus, refugiados da Segunda Guerra Mundial, não havia para mim grandes oportunidades para trabalhar lá. Por outro lado, a resistência em relação à espiritualidade era grande. Assim sendo, como desde cedo senti o impulso para me dedicar de maneira integral ao Yoga, a mudança para o Brasil aconteceu naturalmente. Na época, dedicar-se integralmente ao Yoga aqui no Brasil era difícil. No Uruguai, impossível. Aos 13 anos de idade ouvi falar do Yoga por primeira vez, através de um livro de Alan Watts. Aos 16 comecei a praticar seriamente na escola de Swami Satyananda, em Montevidéu. Lá se vão 28 anos, e o entusiasmo continua.

MIB: E a música, como você a descobriu?
PK: Meus pais são totalmente apaixonados por flamenco e música antiga da Espanha, que comecei a escutar assim que nasci. Quando você é exposto a uma música tão passional, rítmica e visceral como o flamenco desde tão cedo, é natural desenvolver afeição pela música. Certamente, a música está entre os grandes amores da minha vida.

MIB: Sei que você é um apaixonado por instrumentos musicais. Quais foram os instrumentos mais interessantes que você já tocou?
PK: Respondo a pergunta, porém reformulando-a: quais são os instrumentos mais interessantes que não toquei?
O hurdy-gurdy é um instrumento que chama muito a minha atenção. De origem árabe, e com mais de 1000 anos comprovados de existência na Europa, é um misto de harmônio, violoncello e gaita de fole, bastante popular na Europa Oriental, na França e no norte da Espanha. Um hurdy-gurdy bem tocado é um instrumento que faz ao mesmo tempo a harmonia, o solo e a percussão. Tem um nível incrível de sofisticação, tanto na construção como no resultado. Esses instrumentos são muito caros e difíceis de se conseguir. Ainda vou ter que poupar um bom dinheiro para adquirir um, mas está na lista.
Outro instrumento que acho muito interessante é o resonator barítono de oito cordas, um violão-baixo de cordas de aço e corpo de metal, tocado no colo com umtonebar (slide) que seria ideal para me acompanhar nos mantras no meu registro de voz natural, mas esbarro nos mesmos obstáculos: dificuldade em se conseguir, e limite orçamentário. Outros instrumentos de que gosto bastante são o sarangi do Rajastão e o oud egípcio. Esses instrumentos ainda vão aparecer no meu caminho.
Agora, sobre os instrumentos que toco hoje em dia. Dentre os instrumentos que toco habitualmente, destaco a guitarra portuguesa, uma espécie de mandola (ou bandolim grande) de 12 cordas, afinada em Lá. Outro que gosto muito é a hansa veena, um slide guitar da Bengala de 21 cordas (7 cordas + 12 simpáticas + 2 chikaris). Além desses instrumentos, toco também o resonator, uma guitarra de seis cordas de bronze, que tem muito volume e punch, e é bem adequada para viajar, a mandola, um instrumento português que é como um bandolim, porém maior, e um violão de doze cordas de aço.
Ja tive outros instrumentos, como vários tampuras, umrabab afegão, um zas turco, um sarod da Bengala, umsitar, uma balalaika russa, bandolins brasileiros e napolitanos, e outros que passaram pelas minhas mãos e estão agora com amigos. Não gosto de juntar ou guardar instrumentos que não estejam sendo tocados e, como não tenho tempo nem mãos para tocar todos juntos, vou me desfazendo de alguns conforme outros novos vão chegando. A esta altura, poderia já ter um pequeno museu de cordófones, mas não gosto da ideia de acumular por acumular. Essa ideia é contrária ao princípio de aparigraha, a não-possessividade, um dos mais importantes valores da conduta yogika.

MIB: E como a música indiana entrou na sua prática e posteriormente em suas aulas?
PK: Através do vinil de Woodstock, um disco triplo que dedicava um lado inteiro ao concerto de Ravi Shankar naquele festival. Comecei a ouvir aos 13 anos de idade, em 1979, e por muito tempo foi meu único contato com a música indiana. Depois, apesar das dificuldades da época, no fim da década de 1970 e início da década de 1980, consegui outras gravações e fui montando uma biblioteca de sons para educar meus ouvidos. A partir de 1987, quando fiz a minha primeira viagem para a Índia, passei a formar (e posteriormente, digitalizar) uma coleção de música clássica, semi-clássica, devocional, popular e folclórica de diversas partes do sub-contintente indiano que hoje em dia tem um certo volume: 70 Gb.

MIB: Como você formou seu repertório? Conte-nos sobre alguma experiência marcante tocando ou participando de um kirtan?
PK: A cada viagem que faço para a Índia, para estudar com meu guru, Swami Dayananda, procuro alguns antigos discípulos de Swamiji, que são verdadeiros repositórios de kirtans devocionais. Aprendo com eles, que me mostram não apenas as melodias e as letras, mas igualmente me orientam na maneira de visualizar as deidades que vamos invocando com as palavras e as melodias. É uma experiência bem linda e intensa, muito inspiradora. Também aprendo com os colegas e amigos com quem periodicamente nos encontramos nas viagens. Sempre alguém traz algum mantra “novo” que aprendeu com outros yogis ou devotos. Assim, mantemos uma espécie de “banco” de mantras em nossas memórias, e cuidamos dele para as próximas gerações.
Porém, Sandro, me sinto aqui na obrigação de fazer um esclarecimento: eu não sou um músico. Tecnicamente falando, sou muito limitado em termos de habilidade, talento, velocidade e ritmo. Para piorar as coisas, desafino muito mais do que gostaria. Sou mais um bhaktaque usa esse veículo maravilhoso que é a música, para expressar o que sinto aqui, dentro do meu coração. Tenho muito respeito pelos músicos que não apresentam apenas entusiasmo bruto, mas também talento e disciplina para o estudo e o treino e, principalmente, funcionam como veículos para a manifestação de Īśvara.

MIB: Qual o mantra que você usa em sua prática diária?
PK: Uso o Gayatri, que é uma prece para a iluminação de todos os seres, conforme me foi ensinada e explicada pelo meu mestre.

MIB: Você poderia nos falar um pouco sobre a prática do mantra?
PK: O mantra é um recurso usado não apenas nas práticas meditativas do Yoga, mas também em muitas religiões, tanto orientais como ocidentais. O ser humano descobriu muito tempo atrás o poder transformador do som. A música em geral, e os mantras em particular, têm a potencialidade de levar o psiquismo humano a locais insuspeitados de paz e tranquilidade. Porém, cabe lembrar que essa potencialidade não depende unicamente da vibração sonora, mas igualmente da atitude com a qual a prática é feita.

MIB: Pedro, percebo uma grande diferença entre os professores de Yoga que apenas ensinam ásanas e os que são yogis e seguem seu sádhana, assim como grupos que tocam kirtans para “fazer um som” enquanto outros o fazem como prática espiritual. Como você vê a influência da bhakti nestes casos?
PK: Depende da definicao de bhakti que usarmos. O que testemunhamos em alguns casos é que pessoas que não têm uma vocação totalmente clara para se dedicarem ao Yoga, vestem as roupas associadas a ele, tatuam inscrições em sânscrito na pele e, na sequência, formam uma “banda de kirtan”. Nem sempre a devoção ou a correta atitude acompanham os mantras mas, felizmente, existe a possibilidade dessas pessoas despertarem no caminho para o bhakti real. Essa possibilidade do despertar da consciência é o que torna o Yoga tão belo, aberto e democrático.

MIB: Quais os grupos e artistas de Bhakti Yoga que você curte?
PK: Para responder esta questão, vamos definir bhakti de uma maneira mais ampla do que apenas como sendo os cânticos devocionais hindus. Assim, incluimos aqui ogurbani, a música devocional sikh, e o qawaali, a música devocional dos sufis. Segue aqui uma lista de músicos-poetas-devotos indianos e paquistanteses, e outra de músicos ocidentais que seguem a mesma trilha.
Orientais: Chhannulal Mishra, Pandit Jasraj, Gundecha Bandhu, Mukesh Desai, Harjinder Singh, Kishori Amonkar, Kumar Gandharva, MS Subbulakshmi, Madhup Mugdal, Satinder Satraaj, Sultan Khan, Gulshan Kumar, Russil Paul, Abida Parveen, Nusrat Fateh Ali Khan, Jagjit Singh, Sabri Brothers, Swami Brahmananda.
Ocidentais: Shye Ben-Tzur, Jai Uttal e Bhagavan Das. Shye Ben-Tzur é um caso aparte: um judeu de Israel que se dedicou ao aprendizado do qawaali com músicos islámicos da cidade de Ajmer, no Rajastão, onde mora até hoje. Ele é uma verdadeira ponte conciliatória entre dois mundos em conflito e a demonstração de que a música vence barreiras e pode ser uma solução para a paz entre os povos, uma vez que a sua linguagem é universal e transcende fronteiras e interesses políticos.
E, por falar em pontes entre dois mundos, tomo a liberdade de citar aqui outros músicos e grupos que estão na mesma trilha, muito embora não classifiquem necessariamente como devocional a música que fazem: Thierry Robin & Gulabi Sapera, Shujaat Khan, Ananda Shankar, Anoushka Shankar, Hariprasad Chaurasia, Kamal Sabri, Prem Joshua, Harry Manx, John McLaughlin, Nintin Sawhney, Paban Das Baul, State of Bengal, Azam Ali, Bill Laswell, Ben Leinbach, Jivan Gasparyan, Corey Harris, Brij Bhushan Kabra.
Namaste!

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Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
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3 respostas para “Música indiana e devoção”

  1. leio tudo isto e volto a repetir meu mantrinha: só sei que nada sei! obrigada pelas dicas!

  2. Estimado professor, agora a minha lista de pesquisa aumentou consideravelmente! Grande abraço!
    Harih Om.

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