A palavra Yoga deriva da raiz sânscrita yuj, que significa literalmente unir, integrar, totalizar, lier ensemble. Yoga é unir, mas unir o que com o quê?
O ponto de partida
O objetivo do Yoga é transformar o ser humano, conquistar a liberdade absoluta: unir os poderes e faculdades do corpomente para compreender a si mesmo como Puruṣa, o Ser Ilimitado.
A partir da definição de Patañjali, “Yoga é a supressão da [identificação com as] modificações da psiquê” [Yogasūtra, I:2], vemos nos postulados desta disciplina uma sede profunda de transcender os condicionamentos inerentes à condição humana.
Vemos a necessidade de tornar cósmico o ser humano, de desenvolver todas as suas potencialidades para conquistar a reintegração no Puruṣa, a unidade original.
Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo materialista inglês, disse que “a vida do homem é solitária, pobre, repugnante, brutal e curta”.
O Yoga e o Sāṅkhya partem da mesma atitude pessimista, entretanto, não com atitude blasé ou niilista, mas propondo uma solução do tamanho do problema.
O sofrimento e a tríplice miséria existencial (a que advêm de si próprio, de outrem e a provocada pelos fenômenos naturais), são produzidos pelo aprisionamento da pessoa ao devir e pela ignorância, mas podem abolir-se exercendo o conhecimento.
Tomaremos como ponto de partida a definição de Yoga do sábio Patañjali que citamos acima.
A importância desta obra radica no fato de que é a compilação mais antiga, abrangente e reconhecida de técnicas contemplativas de que se tem notícia, tornando-se por essa razão um dos seis darśanas do hinduísmo.
Os sistemas filosóficos que explicam o sentido da existência do ser humano e do Cosmos recebem o nome genérico de darśana. Todos eles têm como finalidade libertar o homem da ignorância existencial, das aflições e do sofrimento.
O vocábulo deriva da raiz drś: ver, refletir, contemplar, compreender, e quer dizer literalmente ponto de vista, visão, compreensão, espelho.
Encontramos seis darśanas ortodoxos no hinduísmo, que formam três pares complementares: Yoga e Sāṅkhya; Nyāya e Vaiśeṣika; Mīmāṁsā e Vedānta.
Entende-se por ortodoxo um sistema de filosofia aceito pelo brahmanismo e a tradição dos śāstras, oposto aos ‘heréticos’, como o jainismo ou o budismo.
Sāṅkhya e Yoga
O Yoga se complementa com outro darśana, o Sāṅkhya: “não há conhecimento como o Sāṅkhya não há poder como o Yoga”, diz o Mokṣadharma, X-304,2.
“Os ingênuos separam o Sāṅkhya do Yoga, mas os sábios nunca falam assim. Se um homem se dedica integralmente a um deles, ele obtém os frutos dos dois.
“A condição atingida pelo Sāṅkhya também é alcançada pelos homens do Yoga. Aquele que vê o Sāṅkhya e o Yoga com uma só coisa, este realmente vê.” Bhagavadgītā.
O alvo de ambas as vias é o mesmo: abolir a consciência profana em benefício de uma outra consciência superior (buddhi) e, através dela, absorver-se no Puruṣa, o Si, Princípio Consciente.
Não obstante, o Sāṅkhya aspira a realizar essa liberação através da compreensão dos tattvas, os princípios da Realidade, enquanto que para o Yoga é igualmente indispensável a prática, a aplicação das técnicas do samyāma.
O que é Sāṅkhya?
O termo Sāṅkhya se presta a diferentes interpretações: número, investigação, análise, cálculo, enumeração dos elementos constitutivos, embora a sua acepção mais provável seja discriminação ou discernimento.
O Sāṅkhya é um sistema filosófico que aparece indissoluvelmente ligado ao Yoga, emprestando algumas das suas premissas para este último.
Podemos identificar a pré-história deste darśana no próprio Ṛgveda. Certos hinos versam sobre a evolução do mundo de forma muito similar à qual o Sāṅkhya, tempos depois, iria elaborar sobre o tema.
No hino védico do Puruṣaśukta se descreve a emanação do Universo a partir do Puruṣa. Nesta cosmogênese, o mundo aparece como manifestação da Consciência Ilimitada, chamada Puruṣa. Essa manifestação é a própria natureza, que abrange o tempo, o espaço, os elementos que eles contêm e todas as leis da física. Virāj faz assim referência à potência criadora:
“Puruṣa é todo o que hoje é, o que foi e o que será, e dono também do imortal do qual, devido ao alimento, ele está por cima (…). Virāj nasceu dele e de Virāj nasceu o Homem. Tão pronto como nasceu foi maior que a Terra por trás e por diante”. Ṛgveda, X:90.
Os três aspectos da Natureza aparecem igualmente no Athārvaveda (X:8): ‘Os homens que possuem a sabedoria sagrada conhecem aquele Ser que reside no lótus de nove portas (o corpo humano), revestido pelas três qualidades (guṇas).’
Se encontram ainda referências mais detalhadas ao Sāṅkhya nas Upaniṣads (principalmente na Svetāśvatāra) e no Mahabhārata (Bhagavadgītā, Anugītā e Mokṣadharma).
O fundador do Sāṅkhya é o lendário sábio Kapila, a quem a tradição atribui a composição do tratado Sāṅkhyasūtra, ou Sāṁpracavāṇa. A Svetāśvatāropaniṣad (V:2) identifica Kapila com Hiraṅyagarbha, um dos nomes de Brahmā, de cuja consciência teria emanado.
Provavelmente a obra mais antiga sobre esta filosofia tenha sido o tratado Śastitantra, “O Livro das Sessenta Frases”, infelizmente perdido.
A Sāṅkhyakārikā (de data incerta, talvez s. II ou I), atribuída a Īśvarakṛṣṇa, dá em apenas sessenta e nove ślokas (versos de dois ou quatro estrofes) uma descrição brilhante e completa do sistema.
Poderíamos definir o Sāṅkhya como uma filosofia emanacionista que propõe como ponto de partida um par original: Puruṣa e Prakṛti. Puruṣa é o Ser, que à a fonte da existência; Prakṛti é a Natureza que é a miríade das suas manifestações.
A partir dessa díade primordial emanam vinte e quatro princípios (tattvas) que formam uma estrutura vertical na qual cada elemento ou grupo de elementos surge dos anteriores.
O sistema não está preocupado com a existência de um Deus, tal como podemos concebê-lo no Ocidente. Puruṣa atua pela sua simples presença, como um catalisador químico.
Ele é o substratrum, ‘aquilo que não se poderia ver, mas pelo que as visões são vistas; aquilo que o pensamento não poderia pensar, mas graças a que o pensamento pensa; aquilo pelo que tudo se manifesta e que por nada é manifestado.’
‘Puruṣa é aquele que não pode nascer nem ser destruído, que não é escravizado nem ativo; que não está sedento de liberdade nem liberado.’
Os tattvas
A criação acontece no momento em que o reflexo do Puruṣa na Prakṛti quebra o equilíbrio entre os três poderes (triguṇa) que constituem esta última, provocando o movimento e a manifestação do mundo das formas.
A partir desse momento, Prakṛti, a substância primordial, manifestação do Puruṣa faz evoluir e desenvolver os níveis de realidade, tattvas.
Esses vinte e quatro tattvas são os seguintes: a massa energética indiferenciada (mahat); a inteligência universal (buddhi); o sentido de individuação (ahaṅkāra); o pensamento (manas).
Os cinco elementos sutis ou qualidades sensíveis (tanmātra): som (śādba), toque (sparśa), forma ou cor (rūpa), sabor (rāsa), cheiro (gandha).
Os cinco órgãos dos sentidos (jñánendriya): audição (śrotra), tato (spārśana), visão (cakṣu), paladar (rasana), olfato (ghrāṇa); os cinco órgãos de ação (karmendriyas): voz (vāk), mãos (pāni), pés (pāda), órgãos excretores (pāyu) e órgãos reprodutores (upaṣṭa).
Os cinco elementos densos (mahābhūta): espaço (ākāśa), ar (vāyu), fogo (tejas), água (apas) e terra (pṛthivī).
A evolução se processa assim: a primeira emanação da Prakṛti é mahat (o grande), a massa energética ou energia primeira; em seguida surge buddhi, a inteligência universal.
Logo, ahaṅkāra, o princípio egóico ou inteligência pessoal; a seguir, manas, o pensamento; karmendriya e jñānendriya, as faculdades de ação e percepção; tanmātra, as qualidades sensíveis; y, finalmente, bhūta, os elementos que constituem a matéria, desde o mais sutil até o mais denso.
Esses elementos densos (espaço, ar, fogo, água e terra) não devem ser interpretados no sentido literal, mas designam os estados etéreo, gasoso, ígneo, aquoso e sólido da matéria.
Essas manifestações da realidade estão imersas umas nas outras, emanando todas do Si, na ordem acima descrita.
Através dos diferentes tattvas circulam três estados (guṇa) que definem por interação todo o existente: sattva (leveza, equilíbrio), rajas (ação, emoção) e tamas (inércia, escuridão).
O triguṇa, o conjunto dos três aspectos ou formas de manifestação da Natureza, está constantemente presente no Universo, guardando proporções diferentes entre tamas, rajas e sattva.
A saída
O Yoga pretende percorrer esse caminho no sentido inverso, utilizando como principal ferramenta o samyāma.
Com pratyāhāra, a retração dos sentidos, estes se fecham aos estímulos do mundo exterior. Com a concentração e a meditação se chega à compreensão da individualidade: ahaṅkāra.
Através do sabījasamādhi, a profunda absorção da atenção, o praticante transcende o próprio ego e percebe o mahat, a energia indiferenciada.
E finalmente, no nirbījasamādhi, a absorção sem suporte, torna-se qualificado para compreender a si mesmo como Puruṣa, o Absoluto.
A conquista da liberdade passa pela destruição da identificação com o manancial produtor dos pensamentos: as aflições humanas (kleśas).
O reservatório do fluxo consciente é um só, mas se revela de cinco maneiras diferentes, derivando todas elas da primeira. Como diz Patañjali:
‘Os obstáculos (à liberdade) são: a ignorância, o egotismo, a exaltação das paixões, a aversão injustificada e o excessivo apego à vida.’
Liberdade dos kleśas
Essas expressões do apego são chamadas kleśas fontes de angústia, pois elas revertem em todos os casos no acúmulo de vivências aflitivas.
Somente após ter-se liberado desses kleśas é que o yogin pode interromper a corrente do karma, a lei de ação e reação.
Corta-se desta forma o círculo vicioso dos impulsos subconscientes (vāsanā), o desejo de satisfazê-los (vṛtti), o karma gerado por essas ações e as novas latências que isto produz, para situar-se além da vida mundana, no ponto do não condicionado.
“O resíduo kármico tem ou é acompanhado por tendências ou disposições (saṁskāra) de vários tipos, incluindo no mínimo dois tipos de vestígios (vasaṇā), um dos quais, se e quando for ativado, produz uma recordação da ação originadora, e outro que, se e quando for ativado, produz certas aflições (kleśas).
“Estes kleśas são concepções errôneas que caracterizam o pensamento daqueles que estão envolvidos em atividades intencionais e são elas as responsáveis pelo fato de a pessoa estar em cativeiro, isto é, criando continuamente resíduos kármicos.”
Dr. Karl Potter, Karma and Rebirth in Classical Indian Tradition (org. W. O’Flaherty), p. 243, Berkeley, 1980.
॥ हरिः ॐ ॥
Extraído do livro Guia de Meditação.
॥ हरिः ॐ ॥
Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Complexo meditativo indiano resulta.em uma comunidade
Busca realidade e si senti em paz Wagner Xavier
Oi Pedro, obrigada pelo texto repleto de referências.
Gostaria de tirar uma dúvida, eu já ouvi várias vezes que o Vedanta vê este mundo em que estamos como real. Agora, no livro do Mircea Eliade sobre Yoga, ele diz que “para o Sankhya e o Yoga o mundo é real, não ilusório, como o é, por exemplo, para o Vedanta.” Existiria ainda hoje este debate entre os darshanas?
Olá Lila,
नमस्ते Namaste. Obrigado pela mensagem.
Não é que haja exatamente um debate, mas uma incompreensão sobre o ensinamento que o Vedānta propõe.
Leitura interessante: https://www.yoga.pro.br/realidade-ilusoria/
Tudo de bom!
Abraço.
correção: o texto lido é de 2000
Olá Professor,
Percebi que esse texto foi publicado em 2010, de lá pra cá, final de 2012 houve alguma mudança do seu entendimento sobre o Samkhya?
Por que o Sr optou por se dedicar mais ao estudo do Vedanta do que ao Samkhya? Já que nesse texto o Yoga esta para o Samkhya e o Vedanta para o Mimansa.Abraço, espero estar com você em julho de 2013 para a formação.
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Olá, Heitor,
Obrigado pela mensagem. Olha, o Vedanta é muito mais coerente como sistema e muito mais fácil de se compreender com a profundidade que estes temas pedem. Estudar Samkhya, principalmente no Brasil, é tarefa complicada pois não há uma tradição viva (embora pessoas aleguem pertencer a essa tradição).
Namaste!
Gostei da clareza. Escrever sobre Yoga de forma ocidentalizada era tudo o que estava faltando. Desvendar o Yoga clássico me levou a fazer algumas analogias em relação ao Cristianismo esotérico, pois tudo leva a crer que existe uma essência nas linguagens hindu e cristã, assim eu penso.
Aqui quem fala e a Bia…gostaria de obter seu telefone…estou no UNIK…e so me procurar!
Entre em contato o quanto antes!
Beatriz.