O belíssimo Ekaślokī descreve, numa única estrofe, um profundo e revelador diálogo entre o professor, Ādi Śaṅkarācārya, e um śiṣya, um estudante, de quem não se conhece o nome.
A dinâmica do diálogo é brilhante e despojada. O professor vai direto ao âmago do autoconhecimento, evitando elucubrações desnecessárias e revelando a verdade sobre si mesmo de maneira clara e direta. Todo o conhecimento das Upaniṣads aparece aqui de maneira sintética, clara e indistinta.
São, ao todo, dez intervenções no diálogo, cinco do professor e outras tantas do aluno. O guru faz quatro perguntas, e tira uma conclusão final, sobre a qual o estudante tem a epifania, a visão do Não-Dual, pela qual reconhece a sua real natureza dizendo, no fim, “Eu sou essa Luz!”
Cada uma das quatro perguntas de Śaṅkara leva o discípulo gradualmente desde as experiências do corpo e a identificação com os sentidos (no caso, o olhar), para a mente, e desta para a compreensão de que ele é o Ser que é a testemunha da mente, do olhar e da luz do sol, da lua ou do fogo.
O saṁsāra, na visão do Yoga, é a vida condicionada, na qual a pessoa não consegue sair do circuito mental ou do círculo vicioso em que se encontra, e sofre com isso.
ॐ किं ज्योतिस्तवभानुमानहनि मे रात्रौ प्रदीपादिकं
स्यादेवं रविदीपदर्शन विधौ किं ज्योतिराख्याहि मे ।
चक्षुस्तस्य निमीलनादिसमये किं धीर्धियो दर्शने
किं तत्राहमतो भवन्परमकं ज्योतिस्तदस्मि प्रभो ॥
oṁ kiṁ jyotistavabhānumānahani me rātrau pradīpādikaṁ
syādevaṁ ravidīpadarśana vidhau kiṁ jyotirākhyāhi me |
cakṣustasya nimīlanādisamaye kiṁ dhīrdhiyo darśane
kiṁ tatrāhamato bhavanparamakaṁ jyotistadasmi prabho ||
kiṁ jyotistava — o que é a luz para você?; bhānumānahani me — para mim, o sol é a luz do dia; rātrau pradīpādikaṁ — à noite, a lamparina é a luz; syādevaṁ — exatamente, assim seja; ravidīpadarśana vidhau— a forma, a maneira de ver o Sol e a lamparina; kiṁ jyotiḥ — o que é a luz?; ākhyāhi me — diga para mim; cakṣuḥ — o olhar, os olhos; tasya nimīlanādisamaye kiṁ — quando você fecha os olhos, qual é a luz?; dhīḥ — a inteligência; dhiyo darśane kiṁ — qual é a luz pela qual você vê a inteligência?; tatra — nesse caso, então; aham — sou Eu; ataḥ bhavan — portanto, você é a origem; paramakaṁ jyoti — a luz suprema; tadasmi prabhaḥ — eu sou essa Luz.
1ª questão: Kiṁ jyotistava — “O que é a luz para você?”
1ª resposta: Bhānumānahani me rātrau pradīpādikaṁ — “Para mim, o sol é a luz do dia e, à noite, a lamparina é a luz”.
2ª questão: Syādevaṁ ravidīpadarśana vidhau kiṁ jyotirākhyāhi me — “E como é que você vê a luz do sol e a da lamparina? Explique para mim”.
2ª resposta: Cakṣuḥ — “Com o olhar”.
3ª questão: Tasya nimīlanādisamaye kiṁ — “Quando você fecha os olhos, qual é a luz?”
3ª resposta: Dhīḥ — “A inteligência”.
4ª questão: Dhiyo darśane kiṁ — “E qual é a luz pela qual você vê a inteligência?”
4ª resposta: Tatra aham — “Nesse caso,sou Eu”.
5ª questão: Ataḥ bhavan paramakaṁ jyoti — “Portanto, você é a origem, a luz suprema”.
5ª resposta: Tadasmi prabhaḥ — “Eu sou essa Luz!”
Ekaślokī: Um Breve Comentário
O que é aquilo que nos permite conhecer o mundo? Buscando o conhecimento, chegamos à conclusão que ele não é diferente da consciência que conhece. Neste śloka, a consciência é comparada com a luz que nos permite enxergar e, portanto, conhecer o que está aí para ser conhecido.
Pequena glossa
O diálogo do Ekaślokī começa com uma pergunta do mestre: “O que você acha que ilumina as coisas que vemos?” Evidentemente, a pergunta aponta para o autoconhecimento. O discípulo responde: “Para mim, de dia a luz do sol, de noite a lâmpada (pradīpa)”.
“E o que é a luz que vê essas luzes?”, pergunta novamente o professor. “O olhar”, replica o aluno. No entanto, os sentidos, por si sós, não são sencientes. Não conhecem a si mesmos nem conhecem o mundo. No entanto, há algo que os conhece e ao mesmo tempo ilumina. Esse algo é chamado dhī ou buddhi, o intelecto.
A terceira pergunta do mestre é a seguinte: “Qual é a luz que ilumina o olho e os demais sentidos?” Diante da questão, o śiṣyaḥ responde: “O intelecto”.
Há algo que brilha dentro e através da mente e que conhece os seus conteúdos, emoções e sensações que integram a experiência de viver. A experiência e o conhecimento do mundo têm lugar na mente.
Diante dessa resposta, o mestre inquire novamente: “Quem é que possibilita a visão da inteligência?” Essa questão leva o discípulo a usar o pronome eu, pois obviamente é nessa direção que vai a inquirição: “Nesse caso, sou eu”.
No entanto, devemos lembrar que esse pronome aponta para a pessoa fundamental, para o eu enquanto consciência. Chegado nesse ponto, o professor afirma: “Portanto, Você é a Origem, a Luz Suprema”. Essa deixa do mestre leva o śiṣyaḥ à conclusão: “Eu sou essa Luz!”
Os sentidos e a mente não tem senciência
Qual é a luz que permite que os olhos vejam e que a mente pense? Essa luz só pode ser o eu, a consciência, que ilumina tudo e todos. Os objetos, os órgãos dos sentidos e a mente e demais faculdades não tem senciência: i.e., por si mesmos, eles são inertes. Eles tampouco têm existência separada do ser, da presença à qual chamamos eu.
Vale lembrar que quando usamos a palavra eu apontamos para Ātma, o ser, e não estamos nos referindo ao ego, chamado em sânscrito ahaṅkāra, que é a função psicológica que usamos para nos comunicar com o mundo e as pessoas.
O olho não consegue enxergar o olho. A mente não pode conhecer a si mesma. O ego e a inteligência precisam ser iluminados pela presença da consciência para poderem realizar suas funções.
Portanto, é necessário que haja uma presença, uma consciência capaz de enxergar e “emprestar” senciência às faculdades e órgãos dos sentidos para que elas possam fazer o seu trabalho.
A consciência é evidente, é ciente de si mesma. É comparada neste verso ao sol, que brilha por si mesmo e ilumina tudo à sua volta. Já o mesmo não vale para os órgãos dos sentidos, nem para o ego, nem para a mente nem para a inteligência. A senciência dessas faculdades deriva, necessariamente, da presença da consciência.
Senciência é a capacidade que os seres vivos têm de ter emoções, sensações e sentimentos de maneira consciente. Noutras palavras, a senciência é a capacidade dos seres de ter percepções conscientes do que acontece no próprio corpo e no que os rodeia.
O sol não precisa ser iluminado
A luz revela os objetos. As coisas são reveladas para os olhos pela luz. Os olhos as revelam por sua vez para a mente. Agora, para ver a luz, você precisa de alguma outra luz? Em última análise, quem ilumina as coisas é o eu.
Você não precisa iluminar o sol com a lanterna do seu celular para poder enxergá-lo. Assim como o sol não depende de outra fonte de luz para ser visto, da mesma maneira a consciência, que é única, não precisa ser iluminada.
Aliás, não existe outra consciência para iluminar a consciência. Essa consciência, que é o eu, é quem ilumina a mente, os órgãos dos sentidos e tudo o que eles revelam. Não existem dois eus, nem em você nem em ninguém. Existe apenas um eu, e ele é autorrevelado e autoexistente.
Esse eu é a luz do mundo que está além do mundo, a luz dos sentidos que os sentidos não conseguem captar, é a luz que ilumina a mente mas não pode ser concebida pela mente.
Esse eu é chamado Brahman, e ele à a verdadeira identidade de todos e cada um dos seres vivos. Você é, portanto, a luz de todas as luzes, a luz autoefulgente, graças a qual tudo existe e é percebido.
Aquilo que é verdadeiramente “eu”, sua identidade, sua existência, transcende o domínio das palavras e dos pensamentos. Há algo para mais além de palavras e pensamentos? Existe algo mais, através de cuja luz são conhecidos os pensamentos, as palavras e tudo o mais?
A resposta é encontrada pela reflexão sobre o nosso senso de identidade. A resposta é a experiência direta de apenas ser o que somos, permitindo-nos repousar na nossa própria natureza.
Ao fazer essa reflexão, veremos que há algo que permanece, sempre. Toda experiência é iluminada ou conhecida pelos sentidos. Sem as sensações e percepções não haveria experiência do mundo. Nesse plano, a luz do mundo, de tudo o que há para ser percebido, são os sentidos.
Mas, será que os sentidos tem existência separada de tudo o mais? Quem ilumina ou conhece os sentidos? A inteligência, chamada aqui dhīḥ, ou buddhi. Se não fosse por ela não haveria experiência nem sensações.
Porém, existe algo que ilumine o intelecto? Qual é a luz da mente? A mente consiste de uma sequência de pensamentos organizados por associação livre, sempre vinculados com os eventos que tem lugar na vida da pessoa. Existe algo que ilumine esse pensar? A mente não conhece a si mesma. O que sabe? Se não fosse por esse conhecimento brilhante, não haveria experiência de uma mente.
Indo mais além da identificação com o pensar, você percebe que existe uma presença invariável, a quem você sempre se refere como eu. Esse ser que você é, é a Consciência que tudo ilumina. E há algo que ilumine a consciência? Nada. Ela apenas conhece a si mesma, por si mesma.
॥ हरिः ॐ ॥
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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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