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O Haṭha e a Cultura Védica

Estamos acostumados a ouvir e aceitar sem maiores questionamentos que o Haṭhayoga, de origem tántrica, é bem mais recente e está completamente separado dos sistemas anteriores a ele, como o Yoga de Patañjali, o Jñānayoga, o Karmayoga, o Mantrayoga, etc.

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O problema de datar o Haṭha

Esta é ao mesmo tempo uma declaração de amor pelo Haṭhayoga e uma defesa dos aspectos esquecidos dessa antiga prática.

Estamos acostumados a ouvir e aceitar sem maiores questionamentos que o Haṭhayoga, de origem tántrica, é bem mais recente e está completamente separado dos sistemas anteriores a ele, como o Yoga de Patañjali, o Jñānayoga, o Karmayoga, o Mantrayoga, etc., como se esses sistemas pertencessem a um universo totalmente diferente do contexto em que o Haṭha nasceu.

Existe consenso em torno da ideia que o Haṭha se desenvolveu no período pós-clássico da história indiana, entre os séculos IX e X desta era, sendo portanto posterior ao Yoga clássico codificado pelo sábio Patañjali no Yogasūtra.

Assim, a origem do Haṭha estaria vinculada ao aparecimento da linhagem dos 64 siddhas (“seres perfeitos”), que inicia com os mestres Matsyendranatha e Gorakṣanatha, do norte da Índia. 

Talvez esteja na hora de revisarmos mais profundamente essas conjecturas. O fato é que o Haṭha desde sempre pertenceu, esteve vinculado e evoluiu junto com a tradição védica.

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Para compreendermos as profundas implicações desta afirmação, seria necessário fazermos uma profunda reflexão sobre a questão da origem deste sistema e, quem sabe, reescrevermos sua história. Ou, pelo menos, parte dela. 

As mesmas dificuldades que enfrentamos ao estudar a história antiga da Índia surgem quando tentamos compreender o processo de formação do Haṭha: os yogins da antiguidade, assim como os outros sábios indianos da época, não estavam preocupados com cronologias e medições do tempo. 

Isso torna frustrante qualquer tentativa de estabelecer a idade real do conhecimento, já que as figuras históricas de que se têm notícia aparecem sempre transfiguradas pelo mito e a datação das obras literárias é totalmente vaga ou até mesmo inexistente.

Isto é especialmente verdadeiro em relação àquele conhecimento vinculado com a busca da auto-realização.

Nos textos antigos, todos os autores remetem-se ao mais velho, ou ao mito, ou assinam com o nome do próprio mestre ou de algum sábio legendário, à guisa de tributo a ele.

Só para ficarmos com um exemplo dos muitos que encontramos na cultura hindu, a grande tarefa dos geógrafos indianos da época consistia, não em medir ou descrever as características físicas ou demográficas daquela região ou daquela civilização.

A grande tarefa era elaborar um sistema que explicasse ao povo que a estrutura física da Terra espelhava a harmonia maior do macrocosmos, que os yogins percebiam em suas meditações e insights.

Desta forma, a Terra era vista como um hemisfério sustentado por quatro enormes elefantes apoiados sobre uma tartaruga gigante que flutuava sobre o oceano das águas causais.

Sobre o hemisfério ficava Jambudvīpa, “a ilha da macieira”, organizada na forma de um mandala em torno do eixo do mundo, o monte Meru, morada do deus Śiva que, por sua vez, era rodeado por outras sete montanhas.

Voltando à idade real do Haṭha, existem estudiosos e praticantes que preferem ver esta disciplina como parte de uma tradição cujas raízes estão ligadas às primeiras Upaniṣads, antigos textos do segundo milênio a.C..

Nesta perspectiva, arriscamo-nos a afirmar que o Haṭhayoga, ou pelo menos, sua forma embrionária, faz parte da tradição védica e está totalmente integrado com ela.

Nos aprofundaremos sobre a conexão entre o Haṭha e as Upaniṣads na segunda metade deste texto.

Os āsanas são mais velhos do que se pensa: uma evidência pouco conhecida

No ano 2000, tive o privilégio de visitar o Śrīṅgeri Maṭha, mosteiro nas montanhas do interior do estado de Kerala, sul da Índia.

Esse é um lugar muito sagrado para todo hindu pertencente ao smārta sampradāya, por ser até hoje a sede onde moram e ensinam os herdeiros espirituais da tradição Advaita, de Ādi Śaṅkarācārya, o grande sábio, poeta e reformador do hinduísmo.

Chegando lá, descobri, para meu encanto, que dentre os motivos que decoravam as paredes de pedra do templo maior, dedicado a Sarasvatī na forma de Śāradāṁbadevī, havia uma vasta série de pequenas, belíssimas e detalhadas esculturas de yogins praticando āsana

Esse foi o único momento em minhas viagens em que realmente lamentei não carregar uma câmera fotográfica.

A acuidade da observação dos escultores era impressionante: para meu olhar de praticante aquilo era um verdadeiro presente.

Apareciam nos painéis, que se estendiam, camadas sobre camadas na parede oeste do templo, todas as posturas clássicas do Haṭha, desde as mais conhecidas até algumas tão complexas que, apesar da clareza da escultura, ficava difícil entender o que o yogin fazia com o seu corpo.

Esse templo foi construído enquanto Śrī Śaṅkarācārya estava vivo, no século VIII d.C., e renovado no século XIV por Śrī Vidyārāṇya.

Isso nos mostra que a prática de āsana do Haṭha é mais antiga que textos como a Haṭhayoga Pradīpikā e a Gheraṇḍa Saṁhitā, que datam aproximadamente do século XV d.C.

Pela teoria antropológica, esse o registro através de escultura ou pintura só é feito quando aquilo que se registra é familiar para o artista e seus ancestrais há, pelo menos, três gerações, ou aproximadamente um século. Portanto, estamos a falar de uma época por volta do ano 1200 d.C., na hipótese mais prudente. 

Acredito que, para chegar no grau de sofisticação técnica registrado nessas esculturas e para que essa prática de āsana tenha sido usada como elemento ao mesmo tempo decorativo e instrutivo nos painéis de pedra do templo, ela era certamente muito mais antiga que a própria construção.

Os sthapatis, arquitetos escultores, nunca iriam escolher tais esculturas se elas não fizessem parte do cotidiano do povo ou, pelo menos, das práticas dos sábios, estudantes e devotos que frequentavam o templo.

Śvetāśvatara: as raízes mais antigas do Haṭha

Se, por outro lado, continuarmos nossa procura pelo Haṭhayoga nas Upaniṣads, iremos nos encontrar com algo muito parecido com ele na Śvetāśvatara, a “Upaniṣad de Śvetāśvatara”.

Śvetāśvatara, ou “aquele que cavalga numa mula branca”, é o sábio a quem devemos esta Upaniṣad.

O nome do sábio faz alusão a uma mula branca, um animal muito prezado na idade védica (śveta = “branco”, aśva = “mula”).

A Śvetāśvataropaniṣad é uma das primeiras e mais importantes. Vejamos alguns poucos trechos deste śāstra:

“Mantendo o corpo firme, como as três partes eretas [tronco, pescoço e cabeça], o sábio dirige os sentidos e a mente ao interior do coração. Brahman é o barco em que ele atravessa o rio do medo.” (II:8).

“Controlando sua força vital, prāṇa, com seus movimentos controlados, o sábio inspira pelas narinas, com a respiração restringida. Livre de distrações, que ele controle a sua mente, como o condutor controla os cavalos rebeldes.” (II:9).

“Não conhece doença, velhice nem sofrimento aquele que forja seu corpo no fogo do Yoga. Atividade, saúde, libertação dos condicionamentos, circunspeção, eloquência, cheiro agradável e pouca secreção, são os sinais pelos quais o Yoga manifesta seu poder.” (II:12-13).

O primeiro parágrafo faz clara alusão à importância do alinhamento postural durante a prática de Yoga.

Uma das maneiras mais eficientes de se manter a conexão com o coração mencionada no texto, é justamente cultivando-se uma postura ereta e relaxada.

A segunda citação deixa clara a conexão entre pensamento e respiração, outro dos temas fundamentais do Haṭha. 

Essa conexão aparece de forma clara na Haṭhayoga Pradīpikā (II:2):

“Enquanto a respiração (prāṇa) for irregular, a mente permanecerá instável; quando a respiração se acalmar, a mente permanecerá imóvel e o yogin conseguirá a estabilidade. Por conseguinte, deve-se controlar a respiração [praticando-se o prāṇāyāma]”.

Em outro trecho (IV:21), a mesma obra afirma: “Aquele que detém o alento, detém também o pensamento. Aquele que comanda o pensamento, domina igualmente o alento.”

A ideia de “forjar” o corpo no fogo do Yoga, presente no terceiro trecho aqui citado, é central à prática do Haṭha, que busca a transubstanciação do corpo mortal em um corpo divino, com a dureza do diamante, vajradeha.

Essa ideia está presente na Gheraṇḍa Saṁhitā (I:24): “Assim como um jarro de argila crua, jogado neste mundo, o corpo decai rapidamente. É preciso endurece-lo, forneando-o no fogo do Poder, para fortalece-lo e purificá-lo”. 

A “vitória” sobre o sofrimento, a velhice e a morte também é um tema recorrente na literatura do Haṭha.

A lista dos benefícios advindos da prática que aparece na Śvetāśvataropaniṣad é similar em tom e conteúdo a muitas outras que aparecem nas obras posteriores.

Exemplos:

“A perfeição do corpo físico [manifesta-se como] beleza, graça, força,  e a dureza e o brilho do diamante”, Yogasūtra, III:47.

“Quando se aperfeiçoa o Haṭhayoga, aparecem os seguintes sinais: agilidade física, brilho no rosto, manifestação da vibração sutil interior (nāḍa), olhar penetrante e claro, saúde, controle do fluido seminal (bindu), aumento do fogo digestivo e total purificação das nāḍīs”. Haṭhayoga Pradīpikā, II:78. 

Em outro trecho (III:30), esta mesma obra diz que certas práticas do Yoga “protegem contra a morte e a velhice, aumentam o fogo gástrico e proporcionam poderes paranormais, siddhis.”

Outra curiosidade em relação a esta Upaniṣad é que nela, o Ser Supremo é designado pelo epíteto Rudra, estando ele associado a Śiva, o patrono do Yoga, é clara aqui também a conexão entre ambos ensinamentos, o da presente Upaniṣad e o dos textos posteriores do Haṭhayoga.

Maitrī: decodificando o genoma do Yoga

Nossa próxima parada nesta jornada é a Maitrāṇīyopaniṣad, também pertencente ao primeiro e mais antigo grupo destes textos (existem Upaniṣads bem mais recentes).

Maitrī é o nome de um ṛṣi, um sábio-yogin-poeta que iniciou a linhagem chamada Maitrāṇīya.

O sexto prapāṭhaka,ou a sexta lição das sete que compõem a Maitrāṇīyopaniṣad propõe a prática de um sistema completo de Yoga chamado ṣaḍāṅga, ou “seis partes”, cujas técnicas são:

1) prāṇāyāma (“expansão da vitalidade”),
2) pratyāhāra (“abstração”),
3) dhyāna (“meditação”),
4) dhāraṇā (“concentração”),
5) tarkā (“focalização”) e
6) samādhi (“contemplação”).

A Upaniṣad diz, concretamente: “Os preceitos para esta união são os seguintes: expansão da respiração, abstração dos sentidos, meditação, foco, contemplação e absorção. Tal é o ṣaḍāṅga, ou Yoga em seis etapas”. Maitrāṇīyopaniṣad, VI:18.

Esta forma de expor o sistema, e as próprias práticas aqui descritas, evidenciam que a Maitrāṇīya é uma espécie de antecipação de todo o Yoga posterior, desde o sistema óctuplo de Patañjali (Aṣṭāṅgayoga, ou Yoga em “oito partes”) ao Sapta Sādhana (“sete práticas”) da Gheraṇḍa Saṁhitā.

Essa organização das diferentes práticas do Yoga em etapas ou membros é comum a quase todos os sistemas técnicos e continua sendo usada até hoje, como uma tentativa de sistematizar a miríade de técnicas que o Yoga desenvolveu desde sua origem para facilitar o caminho dos praticantes.

Igualmente, a Maitrāṇīyopaniṣad contém descrições muito claras de algo bem parecido com o Haṭhayoga posterior.

Vejamos: este texto fala sobre a íntima conexão que existe entre o fluxo da energia vital (prāṇa) e a instabilidade da mente, um tema que foi abordado também na Śvetāśvataropaniṣad e que será retomado milênios mais tarde na Haṭhayoga Pradīpikā, como já vimos anteriormente.

Da mesma maneira, a Maitrī indica a prática de prāṇāyāma como o meio mais importante para se alcançar a estabilidade da mente.

O texto chega a mencionar a prática que seria conhecida posteriormente como khecarīmudrā, que consiste em recolher e elevar a língua, pressionando-a no palato mole, como forma de evitar que o bindu, néctar lunar, se disperse a partir do somacakra.

Esta é uma das principais práticas dos Yogas tántricos, como Haṭha, Kuṇḍaliṇī e Lāyā.

Acreditamos que a ausência do āsana como uma técnica separada no sistema ensinado na Maitrāṇīyopaniṣad, não significa que o trabalho na postura fosse irrelevante, mas que ele se considerava óbvio e, portanto, não precisaria ser mencionado.

Outro dos sistemas visíveis nesta obra é o Nāḍayoga, que será retomado tanto na Haṭhayoga Pradīpikā como na Gheraṇḍa Saṁhitā. É aqui que aparece por primeira vez a expressão Śābdabrahman,“som do Ilimitado”, para designar o mantra sagrado Oṁ.

Podemos concluir então que a análise cuidadosa de textos como estes podem nos revelar muito mais do que imaginamos, não apenas sobre a idade real do Haṭha, mas também sobre os profundos insights que ele deu aos praticantes desde o início, e que nós não devemos esquecer, nem negligenciar em nosso sādhana cotidiano.

॥ हरिः ॐ ॥

Saiba mais sobre a relação entre Yoga e Tantra:
1. Tantra = Sexo?
2. Tantra, a democratização do Yoga
3. Confissões de um Tántrico
4. O corpo é o Templo da Divindade
5. Tantra: sexualidade e espiritualidade
6. A Iluminação do corpo: as Origens do Haṭha Yoga
7. Tantra na Wikipedia (em inglês)

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Pedro nasceu no Uruguai, 58 anos atrás. Conheceu o Yoga na adolescência e pratica desde então. Aprecia o o Yoga mais como uma visão do mundo que inclui um estilo de vida, do que uma simples prática. Escreveu e traduziu 10 livros sobre Yoga, além de editar as revistas Yoga Journal e Cadernos de Yoga e o site yoga.pro.br. Para continuar seu aprendizado, visita à Índia regularmente há mais de três décadas.
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Pedro Kupfer em Conheça, Literatura
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